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Laṅkā e Tróia.

Ensaio comparativo sobre a destruição

anunciada da cidade bárbara

Seguido dos anexos: Sodoma, Gomorra e Siquém

Ricardo Louro Martins
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Trabalho de investigação apresentado no seminário de "Problemáticas Comparadas de História das Religiões", ministrado pelo Professor Doutor José Augusto Ramos, a 07 de Julho de 2011.

PRIMEIRA PARTE

LAṄKĀ

Laṅkā parece derivar da raiz IE lonkó/eha-, “vale”, do latim lanca, “depressão” e “leito de rio”, expressão que é tida como já existente no último período PIE. A disgnação lonkó/eha- por sua vez deriva do IE dhólhaos, “vale”, “cavidade”, “caixa”, etc.,1 obviamente encontramos relação, pelo menos sonora, com Laṅkā, relativo a uma ilha, o actual Śrī Laṅkā. Deriva igualmente da raíz IE kleng-, “turno”, “dobrar”, “circular”, etc., em inglês arcaico hlence, hlinc, “união”, “corrente”, “cota de malha”, do germânico antigo (h)lanka, “cintura”, muito semelhante ao significado etimológico de Ílion.2 Do Tochariano oriental klank “monte”, “fixação”, e do Tochariano ocidental klenke, “monte”, “lugar” e “fixação”. Deriva ainda da raíz IE lenk- “circular”, “dividir” e “atravessar”, e leng-, “circular”.3

Laṅkā, para além de ser o nome da capital do Ceilão, ou da própria ilha do Ceilão, significa ainda “ramo” e “mulher impura”, assim como “santa” e “brilhante”.4

A localização da cidade de Laṅkā é imprecisa, os antigos consideraram-na ser o actual Śrī Laṅkā, enquanto que durante o século XX vários autores foram colocando a hipótese de Laṅkā se localizar em Amarakantak, na montanha Vindhya.5 Contudo se observarmos apenas as descrições das distâncias e referências locais do Ramayana, assim como o tipo de madeira usada para os combates (que é o tipo de madeira que nos dias que correm só se encontra na Índia central), é impossível localizar Laṅkā noutro lugar que não seja na Índia central, sendo assim, Hanumān atravessou um lago e não um oceano.6 Contudo, o autor defende, e com razão, que se dermos atenção ao tipo de madeira usado em Laṅkā, também temos de dar atenção à descrição precisa e realista que a obra faz do oceano, desta forma, não temos motivos óbvios para colocar Laṅkā fora da ilha do Śrī Laṅkā, nem devemos atribuir algumas das descrições das cidades ao período Indo-Grego, apenas porque as ruas das cidades são descritas como paralelas, e porque os soldados são recebidos com vinho e mulheres.7

A palavra Laṅkā parece ter uma origem não-ária, e de acordo com o Gaṇapāṭha, Rāvaṇa e Kubera são filhos de Vaiśravā, o facto de Rāvaṇa aparecer mencionado nesta obra, data-o de pelo menos séc. VI a.C., o que é bem anterior ao período Indo-Grego.8

Simhala é por vezes tido com uma designação para Lanka, embora muitos autores a contrariem, e existe até um mito em que um personagem, Siṃhala, chega a Laṅkā depois do seu navio de afundar, onde é seduzido pelas raksasī, mas que é depois salvo por Avalokiteśvara, na forma de um cavalo alado.

Laṅkā é o local da barbárie, o espaço do outro, o lugar indomável e selvagem. A descrição que o Rāmāyaṇa faz dele reflecte precisamente que o local ainda não estava civilizado pelos ários, embora contenha em si traços imaginários de civilização, com belos palácios e cultura (arte, dança e música).

Provavelmente o Rāmāyaṇa procurou descrever a ilha de Laṅkā sem a conhecer devidamente, é certo, levando alguns autores a crer que se trata da Índia central, contudo, notamos que o próprio Rāmāyaṇa não distingue culturalmente nem geograficamente muito o Centro e Sul da Índia, da ilha de Laṅkā. Desta forma, e a fim de não entrarmos por grandes especulações, diremos apenas que Laṅkā, cidade localizada numa ilha ou num continente, reflecte o imaginário que teriam os Indo-Ários sobre os Draviḍās, sobre o povo que se situava no Centro e no Sul da Índia.

A primeira referência concreta, no decurso da acção, feita ao destino de Laṅkā, é protagonizada por Mārīca, o conselheiro-demónio de Rāvaṇa, que o alerta dos perigos de raptar Sītā, no momento em que este pede a Mārīca que se transforme num veado de ouro, de forma a atrair Sītā, para que Rāma vá atrás dele pela floresta, e com uma jogada inteligente, Lakṣmaṇa o siga, deixando Sītā sozinha, e disponível para ser raptada por Rāvaṇa:

 

Por causa de Maithilī (Sītā) verás Laṅkā destruída, com as várias mansões e palácios, e com todos os objectos preciosos que a adornam. Porque ainda que não tenham cometido qualquer erro, os inocentes irão sofrer os males dos seus aliados, como peixes num tanque de serpentes. Verás os rākṣasas, que untam o seu corpo com divino creme de sândalo e se adornam com preciosa joelharia – vê-los-ás mortos no chão devido à culpa de mais ninguém senão a tua. Verás os caçadores nocturnos fugir nas dez direcções com as suas esposas – se não tiverem sido já levadas – buscando refúgio em vão.

(Rām. III, 35, 21-24)

De forma semelhante ao que acontecerá em Tróia, todas as riquezas serão pilhadas ou destruidas, o povo tentará fugir em vão, mas serão mortos ou feitos escravos. E continua a previsão:

 

Sim, verás certamente Laṅkā enleada numa teia de flechas, engolida por chamas ardentes, os edifícios reduzidos a cinza. Tu possuis milhares de mulheres maravilhosas no teu harém, vossa majestade; contenta-te com as tuas mulheres, rākṣasa, e preserva a tua casa. Se queres continuar a usufruir de prestígio, prosperidade, poder político, e da tua preciosa vida, não ofendas Rāma. Mas se – desprezando este conselho urgente que te dou, meu amigo – puseres as tuas mãos de forma violenta sobre Sītā, as tuas forças perecerão, os arcos de Rāma retirar-te-ão a vida, e então tu e os teus familiares descerão à casa de Yama.

(Rām. III, 36, 25-28)

 

No Kūrmapurāṇa diz-se que Sītā não vai para o Laṅkā, mas lançando o seu corpo ao fogo, vai para Laṅkā numa forma mágica ou ilusória (māyā Sītā) (Kūrmapurāṇa II, 33, 117-124), como Helena em algumas tradições (Estesícoro, Frag. 32, Bergk, in: Platão, Fedro, 243a.; Eurípides, Helena, 31-51; 582 e ss.; 669 e ss.), o que é uma forma de expressar que o poder nunca foi para Laṅkā, mas sim uma imitação ou dolo desse mesmo poder, que serviu apenas para gerar a destruição dessa ambição desmesurada de governo que existia em Laṅkā.

Contudo, Rāvaṇa prossegue com os seus planos, e depois de se aproximar de Sītā de forma disfarçada, dá-se a conhecer:

«Eu sou aquele que aterroriza os mundos, com todos os seus deuses, asuras, grandes serpentes. Eu sou Rāvaṇa, Sītā, o senhor supremo dos exércitos de rākṣasas. Agora que te vi, perfeita senhora dourada vestida de seda, nunca mais terei prazer com as minhas esposas. De vários locais diferentes eu trouxe várias mulheres. Talvez te agrade a ideia de seres a rainha de todas elas. No meio do oceano fica a minha vasta cidade, Laṅkā, sobre o alto de uma montanha e rodeada pelo mar. Aí, minha resplandecente Sītā, deverás passear comigo pelas florestas, nunca sofrendo de ansiedade. Cinco mil escravas cobertas de ornamentos esperarão pela tua mão e pelo teu pé, Sītā, se te tornares minha esposa.»

(Rām. III, 45, 22-27)

«Vivendo lá (Laṅkā) na minha companhia, orgulhosa princesa Sītā, tu deverás esquecer o que significa ser uma mulher mortal. Desfrutando não apenas dos prazeres que os mostrais desfrutam, amável senhora, mas também dos prazeres divinos, deverás em breve esquecer-te desse mortal de curta duração, Rāma.»

(Rām. III, 46, 13-14)

As descrições de Laṅkā e os elogios feitos a Sītā, são um tópico frequente para representar o engano e a ilusão, é um modo de retirar a capacidade de discernimento à figura de Sītā. Veja-se por exemplo o que fazem as nações desde a Modernidade umas às outras, retirando-se ao povo a ideia de História e de Pátria, ou simplesmente a identificação com elas, abriu-se caminho à mundialização e depois à globalização, gerando-se uma ideia utópica e mitológica de Liberdade, Facilidade, Prosperidade e Igualdade, que no final acabam por provocar a perda desses mesmos mitos. E quando Rāvaṇa menciona a imortalidade e os prazeres divinos a Sītā, está claramente a aproximar-se da figura de Calipso, contudo, tanto Sītā como Ulisses preferem os seus parceiros imortais, nomeadamente Rāma e Penélope. Desta forma podemos entender a estadia de Sītā, tal como a de Ulisses, como uma prova que lhe é colocada a fim de lhe compreender os traços positivos e negativos. Sītā não troca o seu marido pela imortalidade, pois sabe que essa imortalidade é ilusória. E mesmo depois desta ter sido raptada, ela permaneceu sem querer nada de Rāvaṇa, rejeitando-o continuamente:

[Rāvaṇa,] Torturado como estava pelas flechas de Kāma, deus do amor, os seus pensamentos viraram-se para Vaidehī (Sītā), entrando assim apressadamente na sua amável residência para a ver. Ao entrar na residência, Rāvaṇa, senhor dos rākṣasas, viu Sītā perdida em sofrimento no meio das mulheres rākṣasa. A sua cara estava lavada em lágrimas, ela tinha um ar miserável e abatido sobre o peso da dor. Ela era como um barco em mar aberto fustigado pelos fortes ventos e prestes a afundar; como uma corça que se perdeu do rebanho e que foi seguindo o ladrar dos cães. Desgraçadamente ela deixou cair a cabeça à medida que o caçador nocturno avançava.»

(Rām. III, 53, 2-5)

Aqui Rāvaṇa pode ser comparado a Páris, que é guiado por Afrodite até ao quarto de Helena. Note-se que também Helena andava rodeada de mulheres troianas. Da mesma forma Draupadī é comparada a um “barco” ou “vaso” sobre as ondas do mar. Tendo em conta que o mar representa com frequência o mundo psíquico, podemos antever que Sītā estava perdida entre as emoções e os medos, ou simplesmente, que esta se encontrava num local perigoso.

Existe ainda alguma semelhança entre Laṅkā e um labirinto, como notou Al-Beruni (no seu Índia ou Ta'riqh al-hind, escrito entre 973-1048), sendo assim comparável a Creta com o seu monstruoso Minotauro.

Rāvaṇa mostrou a Sītā todas as maravilhas de Laṅkā, e disse-lhe:

Porque tu és mais preciosa do que a respiração dentro de mim. Eu tenho em minha posse muitos milhares de mulheres. Sê senhora de todas elas, amável Sītā: Sê minha esposa.

(Rām. III, 53, 17)

Pensa também, em quão rápido passa a juventude, amável Sītā; vem fazer amor comigo.

(Rām. III, 53, 22)

Deixa que as águas da consagração real vertam sobre ti; reina com poder sobre este grande reino de Laṅkā. E com perfeita satisfação faz amor comigo.

(Rām. III, 53, 26)

Aqui permite-se que uma mulher governe, o que é estranho, contudo, existem alguns exemplos de rainhas na Índia antiga;

Sê graciosa para mim; eu sou o teu escravo, para me usares conforme desejes. Não é em vão, contudo, que eu dito estas palavras através de lábios secos. Não é em vão que Rāvaṇa se curva perante uma mulher. (Rām. III, 53, 33-34)

Aqui um homem curva-se perante uma mulher, o que provavelmente corresponde à ideia de “bárbaro” semelhante àquela que os gregos tinham dos persas que se curvavam perante os seus superiores. Mas a todos os pedidos de Rāvaṇa, Sītā responde-lhe sempre da mesma forma:

Uma réstia de vida permanece em ti até que Raghava lhe decrete um fim, mas quão preciosa é a que possuis, como a uma vítima amarrada ao poste sacrificial.

(Rām. III, 54, 9)

devido ao que fizeste, Laṅkā tornar-se-á numa cidade de viúvas.

(Rām. III, 54, 12)

No momento em que me raptaste, vergonha entre os rākṣasas, a condenação caiu sobre ti, e isto só pode acabar com a destruição dos rākṣasas, das tuas mulheres e de ti próprio. Um pária não pode profanar um altar de sacrifício, adornado com conchas e outros utensílios, e santificado pelos hinos dos brahmines.

(Rām. III, 54, 17-18)

E Rāvaṇa impõe-lhe um limite: «Ouve aquilo que tenho para dizer, minha amável Maithilī: Se no espaço de doze meses não te dirigires a mim com um sorriso de amabilidade, os cozinheiros deverão fazer de ti carne picada para o meu pequeno-almoço.» (Rām. III, 54, 22) depois Maithilī foi levada para um bosque de árvores aśoka pelas mulheres rākṣasa. (Rām. III, 54, 27 e ss.)

Tārā (esposa de Sugrīva, o aliado de Rāma) dirá a Lakṣmaṇa:

Dizem que em Laṅkā existem mil vezes um bilião, e trinta e seis vezes cem, trinta e seis vezes mil, e trinta e seis vezes dez mil rākṣasas. E sem matares esses intocáveis rākṣasas, que podem mudar de forma quando querem, ninguém pode matar Rāvaṇa, que roubou Maithilī (Sītā). Assim, esses rākṣasas e o terrível Rāvaṇa, não podem ser vencidos em batalha sem um aliado, Lakṣmaṇa, em particular Sugrīva.

(Rām. IV, 34, 15-17)

Esta notícia sobre Laṅkā parece estar deslocada, porque nesta altura ainda ninguém sabe onde está Sītā, podemos no entanto entender esta passagem como um modo de dar a Tārā uma característica quase de vidente.

Depois será a vez de Sampāti descrever o rapto de Sītā e a cidade de Laṅkā:

Já que sou apenas um abutre cujas asas foram queimadas e cuja força se perdeu, pelas minhas palavras deverei prestar auxílio a Rāma. Porque eu sei tudo sobre os mundos de Varuṇa e os três passos de Viṣṇu, assim como as guerras dos deuses e demónios e a agitação do néctar da imortalidade. A velhice roubou-me a força e a vitalidade enfraqueceu, é meu dever ajudar nesta tarefe de Rāma. Eu próprio vi o terrível Rāvaṇa a levar uma bela jovem adornada com todo o tipo de ornamentos. Gritando: “Rāma! Rāma! Lakṣmaṇa!” Ela estava a deixar cair os seus adornos e estava a debater-se no seu abraço. As suas delicadas vestes de seda brilhavam contra o negro rākṣasa como a luz do sol no cume de uma montanha ou um trovão numa nuvem. Eu penso ter visto Sītā, já que ela estava a gritar pelo nome de Rāma. Agora escutem enquanto eu descrevo a morada do rākṣasa. Este rākṣasa é chamado Rāvaṇa. Ele é o filho de Vaiśravā e irmão de Kubera, e vive na cidade de Laṅkā. Esta bela cidade, Laṅkā, foi construída por Viśvakarman numa ilha no oceano a uma grande distância deste lugar. E é lá que a triste Sītā vive vestida de seda, aprisionada nos aposentos das mulheres de Rāvaṇa, e bem guardada pelas mulheres rākṣasa. É lá, em Laṅkā, protegida pelo mar a toda a volta, que encontrarão a filha do rei Janaka, Maithilī.

(Rām. IV, 57, 12-22)

Depois Sampāti dirá que sabe que Sītā está em Laṅkā, porque o seu filho, ao procurar comida para o seu pai, soube que Sītā havia sido levada para lá. (veja-se: Rām. IV, 58, 6-29) Com isto, Hanumān dá um grande salto sobre o oceano e chega à ilha de Laṅkā (Rām. V, 1, 190), onde começa toda a descrição da cidade bárbara, que muito se assemelha, em aspectos culturais, à Índia dravídica, o que leva a crer que se tratou de uma invasão IE sobre o território PIE, não tendo de ter ocorrido necessariamente nesta ilha, mas simplesmente no sul da Índia. Toda a descrição que se faz da cidade de Laṅkā tem como objectivo provocar o desejo de a visitar, neste caso de a invadir, já que nenhum outro espaço no Rāmāyaṇa é descrito de forma tão sensual quanto este. Em Laṅkā os rākṣasas estão bêbados, como os troianos na noite da destruição, tal como acontece com os Pretendentes em Ítaca, sempre a comer, a beber e em festa. Hanumān ao chegar à cidade disfarça-se, como Ulisses:

Devido ao roubo de Sītā, Rāvaṇa tinha-a especialmente bem protegida por rākṣasas que patrulhavam todos os locais, envergando terríveis arcos. Esta era uma grandiosa e bela fortaleza, rodeada por uma muralha dourada, elevada em centenas de torres, e adornada com conjuntos de bandeiras erguidas em mastros. Tinha divinos portais dourados e decorados com motivos vinícolas.

(Rām. V, 2, 15-17)

Tinha mansões brancas e estava situada no alto de uma montanha, parecendo uma cidade celeste (Rām. V, 2, 19)

Hanumān observou aquela cidade, construída por Viśvakarman e protegida pelo senhor dos rākṣasas, como se fosse uma cidade a flutuar no céu. Estava cheia de horríveis rākṣasas tal como a cidade de Bhogavatī com as suas grandes serpentes. Belamente construída e cintilante, era inimaginável; porque este havia sido previamente o lar de Kubera, senhor das riquezas. Guardada por um vasto número de guerreiros rākṣasa com dentes salientes e com dardos e lanças nas mãos, era tão formidável quanto uma gruta guardada por serpentes venenosas.

(Rām. V, 2, 20-22)

Com os seus terrenos e muralhas a servir de coxas e os seus largos montes como novas vestes, com as suas lanças e os seus milhares de catanas como longos cabelos e as torres como brincos, a cidade fazia lembrar uma mulher.

(Rām. V, 2, 22)

A importância de uma cidade ser comparável a uma mulher, no sentido em que pode ser também roubada, ou bem cuidada, ou casada com um rei que a proteja, etc.. Depois de observar de fora a cidade, Hanumān decide entrar na cidade de noite, tomando para si uma forma imperceptível. (Rām. V, 2, 31-33) Hanumān pensa consigo mesmo:

Mesmo que eu assuma a forma de um rākṣasa, será impossível passar despercebido pelos rākṣasas. Que hipóteses terei com qualquer outra forma? Parece-me que nem o vento pode passar de forma indetectável por aqui, porque não há nada que os rākṣasas não vejam.

(Rām. V, 2, 41-42)

Eu devo tornar-me muito pequeno e entrar Laṅkā durante a noite de forma a cumprir a missão de Rāghava. Entrarei no impregnável forte de Rāvaṇa esta noite, e procurarei por todo o palácio até que eu encontre a filha de Janaka.

(Rām. V, 2, 44-45)

Quando chegou a noite, Hanumān contraiu o seu corpo até ao tamanho de um gato e entrou na cidade (Rām. V, 2, 47-48)

Ele observou a grande cidade. Com as suas cem linhas de palácios, as suas colunas de ouro e prata, e a sua talha dourada, era como a cidade dos gandharvas. Tinha edifícios com sete ou oito andares, cujo chão era incrustado a cristal e ornamentado com ouro. As mansões dos rākṣasas eram resplandecentes, o seu chão ornamentado com pérola trabalhada e matizado com lapis lazuli e pedras preciosas. Os amáveis portais dourados dos rākṣasas iluminavam a bem adornada cidade de Laṅkā de todos os lados.

(Rām. V, 2, 49-51)

a cidade fazia lembrar um hamsa (cisne) a nadar rapidamente num lago (Rām. V, 2, 55)

A cidade ressoava por todo o lado com sons de instrumentos musicais e ornamentos

(Rām. V, 3, 11)

Com as suas preciosas pedras como vestes, armazéns como brincos, e as torres com catapultas como seios, a cidade pareceu-lhe uma bela e ricamente ornamentada mulher. Isto viu o grandioso macaco na cidade dos senhores dos rākṣasas, onde todas as trevas eram expulsas pelos candeeiros e palácios iluminados.

(Rām. V, 3, 18-19)

Ele ouviu o doce canto das mulheres apaixonadas, semelhante ao das apsarāsas no céu.

(Rām. V, 3, 24)

Só em Laṅkā é que é representada a dança e a música de forma tão exaustiva, dando força à ideia de que a tradição será de origem dravídica, o que ajuda a supor uma invasão IE sobre os autóctones, já que a dança encontra-se aqui num ambiente literário que tanto sugere prazer como ilusão. Como podemos ler, no meio de toda esta beleza luxuriante e canto melodioso, surgem as características de barbárie, tão próprias da descrição do outro enquanto “mau” e “não-civilizado”:

Alguns dos rākṣasas foram consagrados sacrificiantes; alguns usavam o cabelo emaranhado como os ascetas; alguns tinham as cabeças rapadas; alguns vestiam pele de vaca, e outros andavam nus; alguns estavam armados com mãos cheias de erva darbha, e outros tinham vasos de fogo sacrificial. Alguns usavam bastões e machados de guerra nas mãos; outros estavam armados com bordões. Alguns tinham apenas um olho ou uma orelha; alguns tinham peitos descaídos que batiam quando se moviam. Alguns tinham dentes salientes e caras distorcidas; alguns eram deformados; alguns eram anões; alguns estavam armados com arcos e outros com espadas; alguns estavam armados com centenas de facas e outros com clavas; alguns tinham grandes traves de metal nas mãos; e alguns resplandeciam na sua maravilhosa armadura. Existiam alguns que nem eram demasiado gordos, nem magros, nem altos, nem demasiado baixos. Alguns eram medonhos; alguns eram mutilados; alguns eram belos, e outros resplandecentes. E o grandioso macaco viu alguns rākṣasas armados com lanças e árvores, alguns que transportavam lanças e dardos, e outros ainda com fundas e forcas. Alguns usavam coroas e estavam besuntados de ungentos; alguns estavam adornados com os mais finos ornamentos; alguns tinham lanças afiadas; outros eram muito poderosos e possuíam trovões.

(Rām. V, 3, 28-32)

Por outro lado, estes seres bárbaros, que podem ser tão belos quanto feios, reflectem a ideia de ilusão material, aplicado à beleza das mulheres. Isto pode funcionar como apelativo às tropas IE para invadirem o território inimigo, provocando um desejo de conquista, pois por um lado os autóctones são bárbaros e monstruosos, sem sentido ético, por outro lado, as senhoras-rākṣasa (as rākṣasī) são belas e estão envoltas num ambiente sedutor:

Alguns rākṣasas discutiam uns com os outros, levantando os braços. Eles balbuciavam embriagados e ridicularizavam-se como bêbedos. Ele viu rākṣasas batendo no peito e lançando os braços sobre os seus amados. E amáveis senhoras aplicavam cosméticos nos seus corpos, enquanto que outros iam dormir.

(Rām. V, 4, 9-10)

O poderoso macaco viu mulheres belas sem as suas vestes exteriores. Elas estavam separadas dos seus amantes, e com aparência delicada – como ouro polido ou como a luz da lua – elas pareciam fios de ouro. Depois ele viu outras mulheres violentas que, tendo saído para se encontrarem com os seus amantes, encontravam-se em puro deleite.

(Rām. V, 4, 17-18)

Em Laṅkā são descritas belas mulheres, muitos adornos e belas mansões, e a cidade fazia lembrar o som do mar devido ao som dos instrumentos (Rām. V, 5, 9-12), também Tróia recebe características semelhantes, embora muito mais contidas, por exemplo: «Ílion de belas mulheres» (Il. II, 113). Em Laṅkā existiam ainda edifícios para diversão, actividades diárias e sexo (Rām. V, 5, 35 e ss.). «Observando neste local, o melhor entre os macacos, viu as terríveis mulheres rākṣasa – com lanças e machados de guerra nas mãos, portando dardos e clavas de ferro – que dormiam perto de Rāvaṇa.» (Rām. V, 5, 27)

O palácio de Rāvaṇa estava cheio de mulheres rākṣasa e de princesas que haviam sido raptadas e obrigadas a serem suas esposas.

(Rām. V, 7, 5)

Como uma mãe, este palácio, sobre a protecção de Rāvaṇa, agradava aos cinco sentidos com os mais delicados objectos dos cinco sentidos. Maruti pensou: “Isto deve ser o céu! Este deve ser o reino dos deuses! Esta deve ser a cidadela de Indra! Ou então, o mais alto estado da perfeição!”

(Rām. V, 7, 26-27)

Aqui temos a clara noção de que o objectivo é passar uma ideia de cidade do pecado, condenada a ser destruida devido ao profundo mergulho que deu na resposta aos sentidos, o que não coincide com a ideia de Dharma político desenvolvido ao longo de toda a narrativa.

Depois Hanumān observa um cenário de mulheres que dormem, embriagadas, desarranjadas, entrelaçadas com outros homens e outras mulheres, com um carácter erótico e boémio pejorativo. (veja-se: Rām. V, 7, 28 e ss.) Descreve ainda mulheres muito belas e bem adornadas, que dormem com instrumentos musicais, fatigadas dos momentos de prazer. (Rām. V, 8, 28-41)

Laṅkā é claramente uma cidade voltada para o prazer, contrastando muito com Ayodhya, que é utópica. É a cidade do adharma (pecado) e de māyā (ilusão):

E ele viu que muitas camas de mulheres estavam vazias, e que algumas dessas belas mulheres se abraçavam umas às outras durante o sono. Uma jovem mulher, que havia cedido ao poder do sono, despia outra das suas vestes, e abraçando-a fez amor com ela enquanto dormia. As amáveis vestes e grinaldas que elas usavam iam caindo com a sua respiração como se tivessem sido levadas por uma suave brisa.

(Rām. V, 9, 26-29)

Ainda assim, Hanumān pensa: «É verdade que eu vi todas as mulheres de Rāvaṇa sem elas saberem, mas ainda assim, a minha mente não ficou nem um momento perturbada. Isto porque é a mente que estimula todos os sentidos para agir bem ou mal, e neste momento, a minha mente continua imperturbável.» (Rām. V, 9, 26-29)

Hanumān procura toda a noite mas não encontra Sītā, e começa a colocar hipóteses, ou ela foi morta porque seguiu a moral ária até ao fim (Rām. V, 10, 3); ou morreu de terror ao ver as horríveis mulheres rākṣasa (Rām. V, 10, 4); ou Sītā ofereceu-se a Rāvaṇa ou caiu do carro voador de Rāvaṇa quando este fugia de Rāma (Rām. V, 11, 6-7); ou o coração de Sītā parou quando esta viu o mar, ou morreu sobre o apertado abraço de Rāvaṇa, ou caiu ao mar (Rām. V, 11, 8-10); ou foi comida por Rāvaṇa ou pelas mulheres rākṣasa (Rām. V, 11, 11-12); ou morreu a pensar em Rāma (Rām. V, 11, 13-14). Mas ele não a encontrará tão facilmente, Hanumān só encontrará Sītā com o surgir da aurora. Irá encontrá-la num local à parte, num belo e calmo bosque de árvores Aśoka, fora dos locais de prazer da cidade. (Rām. V, 11, 55 e ss.) O que diz muito sobre a figura de Sītā: é alguém (ou algo) que não se mistura com o prazer mundano, mas mantém-se afastada, como compreendemos na seguinte descrição:

Então ele viu uma mulher vestida com um tecido sujo e rodeada de mulheres rākṣasa. Ela estava magra devido ao jejum. Ela estava abatida e suspirava com frequência. Ela parecia um lasca da lua decrescente. A sua radiância era amável; mas com a sua actual beleza esta era dificilmente discernível, ela lembrava uma chama de fogo ocultada pelo denso fumo. Ela estava vestida com um simples e fino tecido amarelo, agora muito gasto. Coberta de pó e sem as jóias, ela lembrava um lago sem lótus. Envergonhada, atormentada pela dor, desconsolada e em sofrimento, ela parecia a constelação Rohini tapada pelo planeta Marte.

(Rām. V, 13, 18-21)

Ela era como uma memória longínqua ou a fortuna perdida. Ela era como a crença perdida ou a esperança quebrada, como o sucesso destruído por uma catástrofe ou o intelecto embrutecido. Ela era como a reputação destruída por falsos rumores.

(Rām. V, 13, 32-33)

Hanumān descreve as mulheres rākṣasa, como uma representação do caos e da barbárie:

Uma tinha apenas um olho. Uma tinha apenas uma orelha, enquanto que outras tinham orelhas que cobriam toda a parte superior do corpo. Outra não tinha orelhas. Outra tinha orelhas em bico, enquanto que outra tinha o nariz e a testa [em bico]. Outra tinha uma cabeça enorme; outra tinha o pescoço comprido e fino. Outra tinha pouco cabelo, enquanto que outra era completamente careca. Enquanto que o cabelo de outra cobria-a como um cobertor de lã. Outra tinha orelhas caídas e a testa saliente; outra tinha os seios e a barriga descaídos. (…)

(Rām. V, 15, 5-7)

 

enquanto que Sītā

 

perecia uma estrela caída dos céus que se havia despenhado na terra, devido ao seu mérito exausto.

(Rām. V, 15, 20)

Ela (Sītā) era como a delicada reputação destruída, como a verdade traída, como a sabedoria perdida, e como a esperança quebrada. Ela era como o futuro destruído, como uma ordem desobedecida, como um céu em chamas a quando de uma catástrofe, e como um culto divino mal feito. Ela fazia lembra um lago de lótus destruído ou um exército cujos heróis haviam sido derrotados; ela era como a luz rodeada pelas sombras ou um rio seco. Ela era um altar sacrificial corrompido, uma chama extinta; ela era como uma noite de lua cheia em que o orbe lunar havia sido eclipsado por Rahu.

(Rām. V, 17, 10-13)

 

Entretanto Rāvaṇa acorda e vai falar com Sītā (veja-se Rām. V, 16, 4 – 17, 21) e tenta captar-lhe a atenção, e entre os elogios, diz algo que transforma este povo numa barbárie aos olhos IE:

 

Porque, mulher temorosa, fazer amor com as esposas de outros homens e até roubá-las à força é um comportamento perfeitamente aceitável para os rākṣasas.

(Rām. V, 18, 5)

Mas quanto às investidas de Rāvaṇa e às ameaças das rākṣasī, Sītā limita-se a responder:

Uma mulher humana nunca poderá ser esposa de um rākṣasa. (...) Ainda que ele tenha sido derrotado ou expulso do reino, o meu marido continua a ser o meu mestre!

(Rām. V, 22, 27)

Eu não tocarei nesse caçador nocturno Rāvaṇa nem com o meu pé esquerdo, muito menos me apaixonarei por esse desprezível ser! Ele ainda não deve ter compreendido que o rejeitei, nem ele tem a noção daquilo que é nem da sua miserável raça, já que, na sua natureza vil, tenta cortejar-me.

(Rām. V, 24, 9-10)

Um doa momentos mais famosos da estadia de Sītā em Laṅkā é o sonho profético de Trijata: Trijata sonhou que Rāma guiava um palaquim celeste feito de marfim, levado por milhares de cavalos, voando pelo céu, e na sua união com Sītā, tornava-se igual ao sol com a sua luz. Viu Rāma e Lakṣmaṇa montados sobre um enorme elefante com quatro presas, e Sītā que estava no topo de uma montanha montou-se sobre o elefante que era guiado pelo céu, depois Sītā surgia do colo do marido para com as mãos golpear o sol e a lua. Depois Rāma guiava uma carroça levada por oito bois brancos, juntamente com Sītā e Lakṣmaṇa. Entretanto ela viu Rāvaṇa, que havia caído do seu palácio voador, Pushpada, ele estava caído no chão e uma mulher estava a arrastá-lo, e mais tarde começou a viajar para Sul, na direcção de Yama (deus da morte), numa carroça levada por burros. Depois viu uma assembleia de rākṣasas, bêbedos e com som de instrumentos musicais e todos vestidos de vermelho. Viu a cidade de Laṅkā, cheia de cavalos e carroças, e com as torres e muralhas a tremer e a cair no mar, até se tornar em cinza, e as mulheres rākṣasa bebiam, dançavam e riam alto. (Rām. V, 25, 10-25)

Na mesma linha de profecia, Hanumān dirá a Rāvaṇa, no momento em que este é aprisionado pelo rei-demónio:

Deves compreender que aquela que tu conheces por Sītā e que mantens aqui sob o teu controle é na realidade Kaliratri – a negra noite da destruição universal – que trará a ruína sobre toda a cidade de Laṅkā. Assim deverás pensar no que é melhor para ti e retirar o laço da morte – encarnado na forma de Sītā – que colocaste tu próprio sobre os teus ombros.

(Rām. V, 49, 33-34)

Aqui a situação pode traçar semelhanças com os avisos de Moisés ao faraó no Êxodo, quando este o avisa que deve libertar o seu povo, ou cairão sobre ele as desgraças, porque manter em cativeiro todo um povo, ou uma mulher (representativa do poder) não é muito diferente.

A pena que lhe decreta Rāvaṇa é que lhe queimem a cauda (Rām. V, 51, 2-4), contudo o ardiloso Hanumān consegue fugir, e com a cauda em chamas pega fogo à cidade de Laṅkā. (Rām. V, 52, 6-17) Hanumān regressa de Laṅkā, e conta tudo o que se passou aos outros macacos, que festejam de forma violenta e embebedam-se (são igualmente bárbaros), depois regressam a Kiṣkindhā, onde estão Rāma e Sugrīva, para lhes dar as novidades. (Rām. V, 55-66)

É interessante notar as semelhanças entre os acontecimentos de Laṅkā e de Tróia: as dez cabeças de Rāvaṇa são comparáveis aos dez anos de guerra em Tróia; Rāvaṇa havia dado a um prazo de um ano a Sītā para se deitar com ele, Hanumān encontra-a ao fim de dez meses, e só lhe sobram dois meses, semelhante também ao caminho de Ulisses.

1 MALLORY, J. P.; ADAMS, D. Q., Encyclopedia of Indo-European Culture, Londres, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997, p. 618.

2 Veja-se: Capítulo “Tróia”.

3 MALLORY, J. P.; ADAMS, D. Q., Encyclopedia of Indo-European Culture, Londres, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997, p. 62.

4 BENFEY, Theodor, A Sanskrit-English Dictionary, Delhi, Asian Education Services, 1998 (reimpresso), p. 785.

5 MIRASHI, Vasudev V., Literary and Historical Studies in Indology, Delhi, Motilal Banarsidass, 1975, p. 205; Para a questão da colonização de Lanka, nas versões autóctones, veja-se: PARPOLA, Asko, Pandaih and Sītā: On the Historical Background of the Sanskrit Epics, Journal of the American Oriental Society 122.2, 2002, p. 363-364.

6 MIRASHI, Vasudev V., Literary and Historical Studies in Indology, Delhi, Motilal Banarsidass, 1975, pp. 215-216.

7 MIRASHI, Vasudev V., Literary and Historical Studies in Indology, Delhi, Motilal Banarsidass, 1975, pp. 217-219.

8 Veja-se: MIRASHI, Vasudev V., Literary and Historical Studies in Indology, Delhi, Motilal Banarsidass, 1975, p. 217.

 

SEGUNDA PARTE

TRÓIA

Ílion (Tróia), designação derivada de ἴλια, ἴλιον, é relativo a uma jóia feminina (de uma pulseira ou colar) no dialeto de Cos. Da mesma raiz que εἰλέω e ἴλλω, relativos a “turno”, “circular”, “redondo”, “fechar”, “atar”, “apertar”, “observar”, etc.. Encontra igualmente relação com púbis da mulher (lat. ilia). O termo ἰλλός, de ἴλλω “circular”, refere “fechar os olhos”.1 Ílion deriva provavelmente do hitita Wilusa e (W)ilios, em que o epíteto aplicado é semelhante: em gr. (F)ίλιός (ἴλιός) αἰπεινἠ e em hit. alati wilusati, “Ílion/Wilusa íngreme”.2

Tróia tem sido identificada com o local de Hisarlik no noroeste da Turquia, sendo que a cultura deste local marca o inicio da Idade do Bronze, datando de 3300 a.C., ainda que a construção deva ser mais tardia.3 Tróia começou por ser um povoado fortificado (Tróia I, c. 2900 a.C.), rodeado de pedra e entulho, que terá chegado aos 7 metros de altura.4 A Tróia II, de c. 2500 a.C., consistia numa grande construção circular.5 Contudo, a Tróia VI (c. 1700-1300 a.C.) e VII (c. 1300-1100 a.C.) são aquelas que tradicionalmente se pensa ser as descritas por Homero.6

Na Il. o local da guerra e Tróia, que com as sua muralhas circulares, se aparenta facilmente com a noção de kuklos, kuklopes, Ciclopes, também combatidos por Ulisses, como símbolo de uma raça anterior, de povos PIE que foram invadidos pelos Gregos IE. A guerra de Tróia tem sido vista como uma batalha tri-funcional, em que os Gregos representam as duas primeiras funções, e os Troianos a terceira. Ou seja, os Sacerdotes e Reis/Guerreiros contra os Agricultores/Comerciantes.

A guerra é comparada ao ceifar dos campos, em que das duas pontas os exércitos se vão aproximando, ceifando vidas. (Il. XI, 67-74) Tróia e chamada de «íngreme Ílion» (por exemplo Il. XV, 215), também de difícil acesso e difícil conquista, como em Laṅkā.

Do lado dos Aqueus são as tendas de Ajax e de Aquiles que delimitam o espaço dos Aqueus, estando cada um em sua ponta. (Il. VIII, 223-226) e no meio deles estava Ulisses. (Il. XI, 5-7) Do lado de Ajax estava também Agamémnon. Assim, encontramos uma relação semelhante à descrita na Oração de Corinto, em que a contenda ente Agamémnon e Aquiles é mediada por Ulisses:

(A cidade) sobre a qual dizem que dois deuses combateram, Posídon e Hélio … e depois referindo a sua disputa pela mediação de um terceiro deus (Briareu, segundo Pausânias, Descrição da Grécia, 2, 1, 6), mais velho, que tinha muitas cabeças, e muitos braços, ambos ocuparam esta cidade e território7

O que pode até ser comparado à figura de Rāvaṇa, embora sem um sentido óbvio.

Zeus discute com Témis a Guerra de Tróia. Enquanto os deuses se banqueteiam no casamento de Peleu, a Discórdia aparece e causa a disputa sobre a beleza, entre Atena, Hera e Afrodite. Sob a instrução de Zeus, Hermes encaminha-as até Alexandre no Ida para o julgamento. [Elas prometem a Alexandre grandes presentes: Hera diz que se for a vencedora, dar-lhe-a o reinado sobre o mundo, Atena prometeu-lhe vitória na guerra, e Afrodite a união com Helena.] Alexandre, excitado com a perspectiva de se unir a Helena, escolheu Afrodite. Depois disto, com o incentivo de Afrodite, as embarcações foram construídas [por Féreclo]. Heleno profetiza o que lhes vai acontecer. Afrodite diz a Eneias para que acompanhe Alexandre. E Cassandra revela o destino.8

A guerra de Tróia, ou o seu casus belli, começa num tom mais próximo à de Laṅkā, no que no decorrer da guerra em si, já que o motivo parece ser meramente do âmbito do desejo, aparente e ilusório, o que leva a um rapto injusto, i. e., a um erro, que terá consequências destrutivas.

Nos planos divinos, Zeus provocou a guerra de Tebas e depois a de Tróia, porque a terra se havia queixado do peso dos homens, pois eram várias as raças que deambulavam pela terra, é este o “plano de Zeus”, e Cavil deu-lhe duas ideias, o casamento de Tétis com um mortal, e o nascimento de Helena, gerando assim a guerra entre gregos e troianos.9

Depois, no decurso da guerra, Zeus, de forma a cumprir o pedido de Tétis, dando honra a Aquiles e matando os Aqueus, de forma a castigar a arrogância e tirania de Agamémnon, decidiu enviar um sonho a este mau pastor dos homens, de forma a enganá-lo (Il. II, 1-15), e o sonho divino, aproximando-se de Agamémnon disse:

Tu dormes, ó fogoso filho de Atreu, domador de cavalos. Não deve dormir toda a noite o homem aconselhado, a quem está confiada a hoste, a quem tantas coisas preocupam. Mas agora presta rapidamente atenção. Sou mensageiro de Zeus, que embora esteja longe tem grande pena e se compadece de ti. Manda armar depressa os Aqueus de longos cabelos, pois agora te seria dado tomar a cidade de amplas ruas dos Troianos (…).

(Il. II, 23-30)

Tróia, cidade bem muralhada.

(por exemplo Il. VII, 71)

Também Laṅkā é descrita como tendo amplas ruas e grandes muralhas. (por exemplo: Rām. I, 5, 14 e ss.) Os Troianos ainda se aproximam mais da imagem de bárbaros, quando a amazona Pentesileia vai combater ao lado dos troianos, tendo sido morta por Aquiles.10 Existe até certo ponto, uma reflexão religiosa feita em torno dos Aqueus e dos Troianos, que transforma esta batalha numa guerra celeste e escatológica, da Luz contra as Trevas, que é um tópico usado em vários exemplos, como entre os Pāṇḍava e Kaurava, assim como entre o exército de Rāma e o exército de Rāvaṇa.

 

Tal como o vento dispersa o joio nas eiras sagradas de homens peneireiros, na altura em que a loira Deméter separa o trigo do joio entre rajadas de vento e os montes de joio se embranquecem – assim os Aqueus se embranqueciam por causa da nuvem de pó, que no seu meio o percutir das patas dos cavalos fazia subir até ao céu de bronze, ao juntarem-se de novo à contenda. (…) porém com a noite escondeu Ares furioso o combate para favorecer os Troianos, lançando-se por toda a parte.

(Il. V, 499-508)

E esta batalha escatológica vai-se estreitando ao longo dos cantos, dando a entender que o único fim possível é a destruição total de um dos lados da contenda, como no modo como se encaminham para a batalha, os Troianos fazem muito barulho enquanto avançam para os Aqueus, que estão em total silêncio. (por exemplo Il. III, 1-9; IV, 422 e ss.) Isto representa dois lados bem distintos, um é totalmente superficial e por isso barulhento, enquanto que o outro é interno e silencioso. Não é necessário atribuir a isto um carácter sagrado da dimensão silêncio/ruído, mas na verdade há uma necessidade de constante de fazer recair sobre os Aqueus características mais próximos da rectidão e do favor divino, por contraste com os Troianos, que aqui e ali, tomam características bárbaras, e de povo totalmente amaldiçoado. Note-se por exemplo que quando os Pretendentes estão prestes a morrer às mãos de Ulisses, fazem um grande ruído:

E entre os pretendentes provocou Palas Atena um riso inexaurível, desviando-lhes o espírito. E não era com as próprias bocas que se riam, mas com outras. E a carne que comiam estava alagada de sangue, e de lágrimas se lhes encheram os olhos e no seu íntimo chorava o coração.

(Od. XX, 345-349)

E Teoclímeno diz:

Ah, desgraçados! Que mal sofreis? A noite encobre as vossas cabeças, os vossos rostos, e até os vossos joelhos por baixo! Ardem os gritos de dor, cheias de lágrimas estão as vossas faces, e manchadas de sangue as paredes e o tecto. O adro repleto de fantasmas; repleto está o pátio; para a escuridão do Érebo se precipitam e o sol desapareceu do céu e tudo cobre a bruma do mal.

(Od. XX, 351-357)

Quando Agamémnon é atingido por uma flecha, diz a Menelau:

virá o dia em que será destruída a sacra Ílion, assim como Príamo e o povo de Príamo da lança de freixo. E Zeus, o excelso filho de Crono, que no éter habita, agitará sobre eles todos a escura égide em retaliação por este dolo; não ficarão estas coisas sem cumprimento. (Il. IV, 164-168)

São as deusas Atena e Hera, que querem ver Tróia destruida. (Il. VII, 30-32) Portanto temos a inteligência do poder bélico, poderíamos dizer a estratégia, de Atena, assim como a delimitação e legitimidade régia de Hera contra os Troianos.

As investidas dos Aqueus contra os Troianos são metaforizadas na imagem de um leão que tenta roubar a «vaca mais gorda» de um estábulo guardado por cães, até que cansado, desiste. (Il. XI, 548-557) Aqui, a vaca mais gorda, ou mais apetecível, é nitidamente Helena. Também Nestor compara a situação à guerra entre Eleios e Aqueus devido ao roubo de gado. (Il. XI, 670 e ss.) Trata-se assim de um roubo de riqueza. De um ponto de vista metafórico e religioso poderíamos entender a vaca no imaginário indiano, onde é representativa da alma, desta forma, a alma ou as almas haviam sido aprisionadas em Tróia, como sucede em mitos semelhantes como o de Héracles e Kako, por exemplo. Contudo esta não será a leitura historiograficamente mais facilmente aceite.

Outro tópico do desejo causado pelo feminino, com o fim da provação, é o momento em que Helena põe os Aqueus à prova: Quando os Aqueus estavam dentro do cavalo, à espera que os Troianos adormecessem, para atacarem, aproximou-se Helena, que deu três voltas ao cavalo imitando a voz das esposas dos Aqueus, causando a todos os que estavam dentro do cavalo o desejo de responder e sair, mas Ulisses conseguiu reter a todos. (Od. IV, 68-75)

E num dos raros momentos de sensualidade, podemos ler:

Postando-se junto dela (Helena), assim lhe disse Íris de pés velozes: “Chega aqui querida noiva, para observares as façanhas espantosas de Troianos domadores de cavalos e de Aqueus vestidos de bronze. (…) Mas Alexandre e Menelau, delecto de Ares, irão combater com suas longas lanças pela posse da tua pessoa. Daquele que vencer serás chamada esposa amada.”

(Il. III, 121-138)

Contudo, Helena deixará rapidamente de ser mencionada com frequência durante a Ilíada, para ser quase tópico secundário, já que a determinada altura Diomedes diz:

Que ninguém aceite os tesouros de Alexandre, nem mesmo Helena! É claro até para quem não tem siso que sobre os Troianos foram atados os nós do morticínio.

(Il. VII, 400-402)

Aqui vemos, à semelhança do episódio dos Pretendentes com Ulisses, assim como entre Kaurava e Pāṇḍava, que já não se trata de uma guerra em torno de uma mulher, mas um guerra regida pelo destino, que tem de ser levada até ao fim, e da qual só um lado poderá sair vencedor, pois não existe espaço no mundo para os dois lados coabitarem.

Inclusivamente, os deuses que construíram as muralhas de Tróia, parecem estar contra Tróia. Posídon disse ao seu adversário Apolo, antes de iniciarem combate:

Começa! Pois tu és mais novo. Não seria bonito ser eu a começar, visto que sou mais velho e sei mais coisas. Tolo! Como tens um coração sem tino! Nem te lembras de tudo quanto sofremos de males em Ílion, só nós dentre os deuses, quando ao altivo Laomedonte servimos como jornaleiros por vontade de Zeus durante um ano, recebendo jorna fixa; e ele era nosso amo e dava ordens. Na verdade construí para os Troianos a muralha em torno da cidade, vasta e de grande beleza, para que a cidade nunca fosse saqueada. E tu, ó Febo, apascentaste o gado de passo cambaleante nas faldas do Ida de muitas florestas e muitas escarpas. Mas quando as estações jucundas volverem até chegar o termo da nossa jorna, foi então que de todo o pagamento nos defraudou o tremendo Laomedonte, e mandou-nos embora com ameaças. Ameaçou que nos ataria os pés, assim como as mãos em cima, e que nos venderia como escravos nas ilhas longínquas! (…) É ao povo dele que tu agora favoreces e não colaboras connosco para que pereçam os presunçosos Troianos de forma horrível: eles, seus filhos e suas esposas legítimas.

(Il. XXI, 439-460)

Este será também um motivo para a destruição da cidade, já que não se pagou o trabalho dos deuses, ou seja, os deuses não foram honrados quanto à construção da cidade, como é devido. É por este motivo que Posídon se coloca do lado dos Aqueus. (Veja-se: Il. XX, 293; XXI, 459, XXIV, 26; XX, 312 e ss.)

É sabido que para os povos antigos em geral, o sagrado atinge-se por imitação, a imitatio Dei, da mesma forma, o poder e a fundação de uma cidade seriam correctos caso repetissem rigorosamente o seu reflexo mitológico, e caso este rito de fundação fosse mal realizado, seria como chamar cosmos ao caos, gerando-se a partir do erro consequência destrutivas e não construtivas.11

Note-se também que de um ponto de vista simbólico, Tróia ao ter sido construída por Apolo e por Posídon, representa duas coisas: Apolo, o tocador da arpa das sete cordas, o sol que harmoniza e alimenta os sete planetas, o regente, a mente ou o coração sobre os órgãos, por exemplo, que representa acima de tudo a vida; e Posídon, o mar, o mundo psíquico, emotivo, etc., o caminho do homem de um lado ao outro. Dão aos Troianos um carácter mundano e frágil – até porque Posídon passará para o lado dos Aqueus – sobre os quais se abaterá o destino de Zeus, às mãos dos Aqueus, guiados por Hera e Atena, que são deusas menos viradas para a vida factual. Isto deu azo a que alguns autores, seguindo na linha de Dumézil, vissem aqui uma guerra funcional, o que não parece fazer muito sentido: Do lado dos Aqueus estão Hera, Atena, Posídon, Hermes e Hefesto; Do lado dos Troianos estão Ares, Apolo, Ártemis, Leto, Xanto e Afrodite. (Il. XX, 33-40; XV, 213-214) Que lutarão frente a frente: Posídon vs. Apolo; Ares vs. Atena; Hera vs. Ártemis; Leto vs. Hermes; Hefesto vs. Xanto. (Il. XX, 67-74) Só Afrodite não combate.

Em vez de uma guerra propriamente funcional poderíamos entender a metáfora ao carácter dos povos, vejamos, os Aqueus com o apoio dos deuses ganham características muito próprias: Hera (a realeza); Atena (a estratégia, guerra); Posídon (domínio dos mares, caminho); Hermes (ligação entre Ideal celeste de reino e reino factual, já que é mensageiro); e Hefesto (artesão, o trabalho humano). Por seu lado, os Troianos tornam-se bastante diferentes: Ares (guerra, destruição), Apolo (sol, vida), Ártemis (floresta, barbárie), Leto (anoitecer), Xanto (rio) e Afrodite (amor, paixão). O que dá a entender a destruição irremediável.

Mas quando morreram os melhores dos Troianos e quando muitos dos Argivos ou tinham morrido ou partido, e a cidade de Príamo foi saqueada no décimo ano e os Argivos partiram nas naus para a amada terra pátria, foi então que Posídon e Apolo tomaram a decisão de varrer de lá a muralha, reunindo o caudal dos rios que das montanhas do Ida fluíam para o mar: o Reso e o Heptáporo e o Careso e o Ródio; o Grenico e o Esepo e o divino Escamandro e o Simoente, onde muitos escudos de pele de boi e muitos elmos tinham caído na poeira, assim como a raça de homens semi-divinos. (Il. XII, 13-23)

Outro elemento interessante é a existência de uma estátua de Atena dentro das muralhas de Tróia, que permite à cidade não cair. Heleno dirá a Heitor:

Heitor, vai tu agora para a cidade e fala a tua mãe que é tua e minha: diz-lhe para reunir as anciãs no templo de Atena de olhos garços na acrópole. Depois de abrir com a chave as portas da casa sagrada, a veste que lhe parecer a mais bela e mais ampla das que tem em casa e que a ela própria for a mais grata, que deponha essa veste nos joelhos de Atena de belos cabelos, jurando que lhe sacrificará no templo doze vítimas com um ano, inexperientes do acicate, na esperança de que se compadeça da cidade, das mulheres e filhos pequenos dos Troianos; na esperança de que afaste da sagrada Ílion o Tidida.

(Il. VI, 86-96)

Isto porque Diomedes estava a atacar os Troianos de forma impiedosa, podendo vir a entrar na cidade. Vemos assim que e a estátua de Atena que protege a cidade e que a mantém inconquistável. N'A Pequena Ilíada, podemos ler:

Epeios, seguindo os conselhos de Atena, (traz lenha do Ida) e constrói um cavalo de madeira. Ulisses disfarça-se (e veste roupa de sem-abrigo) e entra em Ilíon a fim de fazer o reconhecimento. Ele é reconhecido por Helena, e chega a um acordo com ela a cerca de tomar a cidade. Depois de matar alguns troianos, ele volta para os barcos. Depois ele traz o Palladion (estátua de Atena, da qual Tróia depende) para fora de Ílios com Diomédes.12

Esta estátua é comparável à estátua de Lot, assim como à imagem/fantasma de Sītā e de Helena. A estátua tem de ser roubada para a cidade cair, a ideia é semelhante à de Astianax, criança de dois anos que cujo nome significa algo como “guardião das portas cidade”, e que foi atirado das muralhas de Tróia por Ulisses.13

Esta estátua que havia sido lançada por Zeus para a cidade de Tróia, como marca de fundação, (Apolodoro, Biblioteca III, 12, 3) e que será depois roubada, contém em si uma narrativa de “perca de poder”, veja-se:

Quando o templo de Atena estava em Ílion estava em chamas, Ilos (rei fundador de Tróia) aproximou-se e resgatou o Palladion, a estátua que havia caído do céu, e ficou cego: pois o Palladion não deve ser observado por um homem.

(Pseudo-Plutarco, Histórias Paralelas XVII)

Esta cegueira é claramente um símbolo de perda, seja de poder, legitimidade, ou continuidade. Tróia foi durante a Idade Média vista numa dualidade bastante interessante, por um lado podia representar Jerusalém destruída, por outro lado era símbolo de um local mundano e de pecado, visto que toda a guerra se deu devido ao Pomo da Discórdia, semelhante ao Fruto do Conhecimento do Bem e do Mal, proibido, que também gerou um género de destruição do paraíso.14 Onde a Serpente e Eva são culpadas, encontramos Afrodite e Helena, colocando Páris numa situação de inocência aparentemente semelhante à de Adão, contudo, vemos que as fontes traçam mais características de inocência a Helena, deixando a culpa a Páris.

BREVES CONCLUSÕES

De acordo com as citações e considerações apresentadas, podemos compreender que nestas cidades alguns tópicos se assemelham:

  1. Alguém comete um erro que lançará um género de maldição sobre toda a cidade.

  2. A cidade é em seguida atacada por um grupo aliado, sendo o motivo um roubo, rapto ou incumprimento da Lei.

  3. O rei é geralmente opressor e desfavorecido a algum momento pelos deuses, dependendo sempre de um plano e de um prazo divino, ao qual não pode escapar.

  4. A esposa do rei é geralmente símbolo do mantimento da Lei, como pequena chama no meio do ambiente bárbaro e mundano.

  5. O povo é geralmente descrito como terrível e violento, contudo demonstra fraqueza nos momentos-chave, entrando com frequência em debandada. O sono, a embriaguez e a gula são frequentes nestes meios.

  6. Os valores da cidade são mundanos e urgem por ser renovados (destruídos)

  7. A construção é muito mencionada, as muralhas são fortíssimas e há com frequência referência a arte, são cidades construídas por personagens divinas.

  8. Geograficamente estas cidades encontram-se em locais de difícil acesso, no meio do mar ou num local remoto.

  9. No final, os homens são mortos, as mulheres entram num grande lamento, sendo roubadas, e a cidade é totalmente destruída pelo fogo.

  10. O povo invasor recupera o prémio roubado, ganhando também legitimidade.

Se o roubo da mulher representa o “roubo” do poder, pode significar que o período da guerra de Tróia (Gregos vs. Hititas) se deu algures entre os sécs. XIV (expoente máximo) e XII (início da decadência) a.C., reflectindo a necessidade que os gregos tinham de retirar rapidamente o poder aos hititas, representando popularmente a ideia de uma mulher raptada. As epopeias homéricas terão surgido após a guerra, com o retorno da supremacia ao mundo grego.

No caso de Laṅkā poderá ser diferente, no sentido em que se trata de um ataque explícito aos bárbaros, que detinham o poder no sul da Índia e na ilha do Ceilão. Contudo, de forma muito idêntica é utilizado o tópico do rapto, que pode servir para motivar o povo e em especial os combatentes, já que vão combater simbolicamente por uma mulher, a conquistarem determinada região ou cidade, que em realidade, representa uma tarefa difícil.

ANEXO I (A destruição de Gomorra e Sodoma)

É possível traçar uma comparação com a destruição de Gomorra e Sodoma, cidades igualmente viradas para a imoralidade. Abrão abandonou a sua terra em Haran e foi para o Egipto às ordens de Javé, juntamente com o seu sobrinho Lot, e com a sua esposa Sarai. (Gén. 12, 1-5) Ao chegarem ao Egipto, os egípcios notaram a beleza de Sarai e levaram-na à presença do Faraó, o Faraó, ao saber que era a mulher de Abrão, mandou-os embora, mas por causa de Sarai, Javé infligirá pesados castigos sobre o faraó e à sua casa (Gén. 12, 14-20) Depois de Abraão e Lot se terem separado, Javé dirige-se a Abrão desta forma:

Ergue os teus olhos e, do sítio em que estás, contempla o norte, o sul, o oriente e o ocidente. Toda a terra que estás a ver, dar-ta-ei, a ti e aos teus descendentes, para sempre. Farei que a tua descendencia seja numerosa como o pó da terra, de modo a que só se alguém puder contar o pó da terra é que a tua posteridade poderá ser contada. Levanta-te, percorre esta terra em todas as direcções, porque Eu ta darei.

(Gén. 13, 14-17)

Esta é uma ideia muito presente na Índia, a mulher raptada ou maltratada serve de pretexto à conquista do mundo, pois os heróis caminham nas quatro direcções do mundo. Até certo ponto Ulisses pode ser incluído nesta ideia de super-conquista. Os reis de Sodoma, Gomorra, Adma, Seboim e Bela, estiveram sob o jugo dos reinos (ou tribos) de Chinear, Elassar, Elam e Goim, contudo, ao décimo terceiro ano revoltaram-se, e no décimo quarto ano foram atacados tendo perdido a batalha. Nos despojos de guerra ficou também Lot. (Gén. 14, 1-12) Mas Abrão, ao saber disto, reuniu 318 homens que atacaram durante a noite, conseguindo assim recuperar todos os bens perdidos em batalha, as mulheres e os prisioneiros, incluindo Lot. (Gén. 14, 14-16)

Como Sarai não conseguia dar filho a Abrão, deu-lhe a sua serva, Agar, que deu à luz Ismael. (Gén. 16) Depois, Javé permitirá que Sarai, agora chamada Sara, tenha um filho, chamado Isaac. (Gén. 17, 15-19)

Javé aparece a Abrão na forma humana, com mais dois homens, estes irão até Sodoma. Javé descreve então a Abrão o que irá fazer à barulhenta cidade de Sodoma:

O clamor de Sodoma e Gomorra é intenso, e o seu pecado agrava-se extremamente. Vou descer a fim de ver se, na realidade, a conduta deles corresponde ao brado que chegou até mim. E se não for assim, sabê-lo-ei.

(Gén. 18, 20-21)

A questão do ruído existe igualmente nos Troianos. Lot estava na cidade, mas recebe estes três viajantes, que o alertam do perigo e o ajudam a fugir juntamente com a sua esposa e as suas duas filhas, mas alertam-no de que não podem olhar para trás (Gén. 19, 1-17), contudo, enquanto a cidade está a ser destruída por Javé, a sua esposa olha para trás, e transforma-se em estátua de sal. (Gén. 19, 23-26)

Esta situação é comparável à de Orfeu que perde Eurídice, assim como à de Ahalaya transformada em pedra. Assim como a ideia de “imagem” ou “estátua” associada a Helena e a Sita. Contudo, para além das comparações, podemos ver nestas mulheres o símbolo de uma “petrificação” do poder, ou de outra forma, uma fossilização desse poder, que fica como estátua de um passado remoto.

Existem ainda bastantes referências imagéticas que se assemelham em muito aos épicos indianos no Antigo Testamento.

ANEXO II (A Destruição da Cidade de Siquém)

Depois de Dina ter sido raptada e violada, Levi e Simão atacaram a cidade de Siquém e mataram todos os homens. Depois de matarem os homens, foram atacados por trezentas mulheres, que lhes atiraram pedras e pó,15 e raptaram 85 virgens e 47 homens.16

Daqui se subentende a ideia de Cidade do Pecado, cidade onde a mulher – ou o poder – é mal tratada, e como tal tem de ser destruída. O mesmo acontece com Tróia e Lanka.

Quando os irmãos Levi e Simão massacraram os homens de Siquém, Dina recusou-se a partir com eles, dizendo: “Para onde deverei levar a minha vergonha?”, mas Simão jurou que havia de se casar com ela, como acabou por acontecer. E quando ela morreu no Egipto ele levou-a para a Terra Santa onde a enterrou. Dina deu um filho ao seu irmão Simão, e da sua união com Siquém gerou uma filha.17 Noutra tradição diz-se que Job havia casado com Dina, a sua co-esposa, e esta deu-lhe sete filhos e três filhas.18 Noutra versão do mito, Dina terá emigrado com os seus irmãos e Jacob para o Egipto (Jub 34, 14-19; Gén 46, 15), o que a assemelha ao fantasma de Helena, que é levado para o Egipto. A filha de Dina e Hamor,19 chamada Asenath, foi abandonada na fronteira com o Egipto, devido à vergonha que representava, tendo sido depois acolhida por Potifar.20 A cidade de Siquém foi dada por Siquém, a Dina e à sua filha Asenath, como presente.21 Oito cidades dos Amoritas foram destruídas pelos irmãos Simão e Levi, devido a Dina.22 Estes irmãos traçam ainda comparações bem interessantes com os irmãos Rāma e Laksmana, por exemplo:

Na sua ira Simão e Levi mataram o príncipe de Siquém, e deliberadamente venderam José, o touro, à escravatura. Amaldiçoada estava a cidade de Siquém quando eles entraram e a destruíram. Se eles se mantiverem unidos, nenhum rei poderá permanecer de pé frente a eles, nenhuma guerra prosperará contra eles. Desta forma, irei dividir e dispersar as suas posses entre as posses das outras tribos.23

Este tópico da mulher raptada ou maltratada, parece servir sempre para legitimar o poder ou a acção bélica sobre outro povo.

1 CHANTRAINE, Pierre, Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque: Histoire des Mots, Paris, Éditions Klincksieck, 1977, p. 463.

2 MALLORY, J. P.; ADAMS, D. Q., Encyclopedia of Indo-European Culture, Londres, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997, p. 605.

3 MALLORY, J. P.; ADAMS, D. Q., Encyclopedia of Indo-European Culture, Londres, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997, p. 604.

4 MALLORY, J. P.; ADAMS, D. Q., Encyclopedia of Indo-European Culture, Londres, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997, p. 604.

5 MALLORY, J. P.; ADAMS, D. Q., Encyclopedia of Indo-European Culture, Londres, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997, p. 605.

6 MALLORY, J. P.; ADAMS, D. Q., Encyclopedia of Indo-European Culture, Londres, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997, p. 605.

7 Eumelus, frag. 6, Favorino, Oração de Corinto 11. In WEST, Martin L., Greek Epic Fragments: From the Seventh to the Fifth Centuries BC, Loeb Classical Library, London, Harvard University Press, 2003, p. 235.

8 Proclus, Crestomatia, Ciprias, Argumento 1. In WEST, Martin L., Greek Epic Fragments: From the Seventh to the Fifth Centuries BC, Loeb Classical Library, London, Harvard University Press, 2003, p. 69.

9 Comentário à Ilíada, I, 5. Cíprias, frag. 1, In WEST, Martin L., Greek Epic Fragments: From the Seventh to the Fifth Centuries BC, Loeb Classical Library, London, Harvard University Press, 2003, p. 81-83.

10 Etiópicas, Argumento, 1; In Proclo, Chrestomathy, 5, 1-6, In WEST, Martin L., Greek Epic Fragments: From the Seventh to the Fifth Centuries BC, Loeb Classical Library, London, Harvard University Press, 2003, p. 111.

11 Veja-se: PLANAS, Javier Alvarado, El Pensamiento Juridico Primitivo, Madrid, Editorial Nueva Acropolis, 1986, pp. 50-51.

12 A Pequena Ilíada, argumento, 4. In, WEST, Martin L., Greek Epic Fragments: From the Seventh to the Fifth Centuries BC, Loeb Classical Library, London, Harvard University Press, 2003, p. 123.

13 A Pequena Ilíada, frag. 18 In, WEST, Martin L., Greek Epic Fragments: From the Seventh to the Fifth Centuries BC, Loeb Classical Library, London, Harvard University Press, 2003, p. 137; O Saque de Ilion, argumento 4. Proclo, Chrestomathy In, WEST, Martin L., Greek Epic Fragments: From the Seventh to the Fifth Centuries BC, Loeb Classical Library, London, Harvard University Press, 2003, p. 147; Quinto Smirneu, A Queda de Tróia, XIII, 251 e ss.; Il. XXII, 506-507.

14 Para o tema veja-se: SHEPARD, Alan; POWELL, Stephen D., Fantasies of Troy: Classical Tales and the Social Imaginary in Medieval and Early Modern Europe, Toronto, CRRS Publications – University of Toronto, 2004, p. 35

15 Note-se que o uso de pedras nos épicos serve com frequência para demarcar a ideia de barbárie, da mesma forma ataca Polifemo e outros monstros que Ulisses encontra pelo caminho, tal como a própria batalha às portas de Tróia. Contudo, no imaginário judaico a pedra não parece ter este significado, já que David, por exemplo, derruba o bárbaro e opressor com uma pedra.

16 GINZBERG, Louis, Legends of the Jews, vol. I, Filadelfia, The Jewish Publication Society of America, 198815, pp. 399-400.

17 GINZBERG, Louis, Legends of the Jews, vol. II, Filadelfia, The Jewish Publication Society of America, 198813, pp. 37-38.

18 GINZBERG, Louis, Legends of the Jews, vol. II, Filadelfia, The Jewish Publication Society of America, 198813, p. 227; 241.

19 Ou de Siquém, GINZBERG, Louis, Legends of the Jews, vol. II, Filadelfia, The Jewish Publication Society of America, 198813, p. 38.

20 GINZBERG, Louis, Legends of the Jews, vol. II, Filadelfia, The Jewish Publication Society of America, 198813, p. 76.

21 GINZBERG, Louis, Legends of the Jews, vol. II, Filadelfia, The Jewish Publication Society of America, 198813, p. 139.

22 GINZBERG, Louis, Legends of the Jews, vol. II, Filadelfia, The Jewish Publication Society of America, 198813, p. 93.

23 GINZBERG, Louis, Legends of the Jews, vol. II, Filadelfia, The Jewish Publication Society of America, 198813, p. 142.

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