top of page

Legitimar a violência.

Justificações morais para a acção violenta no Mahābhārata

Ricardo Louro Martins
the_slaying_of_jayadratha_from_the_mahab

O artigo que agora apresentamos resulta de uma comunicação, com o mesmo título, apresentada na sessão "Violência na Poesia Épica" do colóquio internacional "A Violência no Mundo Antigo e Medieval", na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a 19 de Fevereiro de 2014.

O Mahābhārata, tal como o conhecemos, terá sido composto entre o séc. IV a.C e o IV d.C., período que coincide com a invasão de Alexandre na Índia (327-325 a.C.) e com a fundação e queda da dinastia Maurya (324 a.C.),1 concretamente, num interregno entre dois impérios, o Maurya e o Gupta, numa época marcada pelas tensões políticas e, sobretudo, por uma grande incerteza para com o futuro. O rei pluralista Aśoka (sécs. IV-III a.C.), após ter conquistado grande parte da Índia e de ter cumprido o violento massacre em Kaliṅga, sugeriu uma pacificação, implementando uma ideia idealista de império, onde se atenuaram as diferenças de classes, a morte de animais, bem como a agressividade para com os estrangeiros. Simultaneamente, cultos como os de Viṣṇu e Śiva ganham força perante o enfraquecido panteão védico, o que nos permite compreender que o hinduísmo também se transformou com Aśoka, com o budismo e com as definições do dharma no Mahābhārata. Já em 115 a.C., o embaixador grego Heliodoro, erigiu um pilar no Madhya Pradeś com a águia de Viṣṇu no topo (Garuḍa), tendo dito que ele próprio era um devoto a Viṣṇu. O que demonstra o diálogo entre hindus e não-hindus. As semelhanças entre o rei mitológico Yudhiṣṭhira e o rei budista Aśoka, propositadas ou não, desenvolvem-se nas tentativas de evitar qualquer acto de violência, para a qual é sempre necessária uma legitimação.2 Já a guerra a que se refere o épico terá ocorrido por volta do ano 950 a.C., coincidindo com o período védico e utilizando-o como arcaísmo linguístico e cultural.3

 

Este épico, que perfaz cerca de oito vezes o tamanho da Ilíada e da Odisseia juntas,4 dedica um quarto do seu tamanho à guerra entre duas facções da mesma família, os Pāṇḍavas e os Kauravas, ambos descendentes de um antepassado comum, Bharata. No entanto, para além da guerra, várias são as histórias paralelas e as justificações do conflito que, numa época que se imagina a mergulhar no Caos (no momento de entrada no kalīyuga, ou «idade negra»), que representam a destruição de um mundo, até então, baseado na moral, o colapso da civilização e uma era de violência.5 Esta violência está, como veremos, presente sobretudo nos animais, tal como a ideia de ahiṃsā, a «não-violência», que é frequentemente debatida ao longo do épico, mas referindo-se ao sacrifício animal,6 sacrifício esse, que é transferido para a guerra, dando ao conflito bélico uma conotação de sacrifício humano, necessário para a purificação do mundo.

 

A violência humana é primeiro que tudo, o resultado inevitável do facto de os homens serem animais e de os animais serem violentos,7 neste sentido, o carácter moralizador do épico tenta, desesperadamente, evitar a guerra, mas nada pode fazer contra a natureza animal. Esta violência animal estende-se ao homem por meio das inúmeras comparações entre a natureza humana e as características animais, já que o clima que se vive no épico é de «violência grotesca e autorizada»8 de todos contra todos, entre homens, entre animais, e de homens contra animais,9 confirmada pela ideia de que o mundo é regido pelo mātsyanyāya, i.e., a «lei do peixe»,10 o mundo dos mais fortes, onde o peixe grande come o peixe pequeno, que aponta para o aspecto canibalístico e animal da natureza humana, ou daquilo que habita no homem,11 não se distinguindo verdadeiramente o combate plural e externo daquele individual e interno.

Esta mesma ideia da «lei do peixe» está presente, por exemplo, no casamento de Draupadī, a esposa comum dos cinco Pāṇḍavas, onde a noiva escolhe o mais forte dos pretendentes. Aquele que, levantando e armando um pesado arco, seja capaz de atingir com uma flecha um peixe numa plataforma giratória.12 Para além do peixe, outros animais servem de metáfora à violência, em especial o cão. É paradigmática a forma como o próprio épico inicia com um acto de violência injustificada cometida contra um cão. Janamejaya, que durante um sacrifício de serpentes (que é na realidade um anti-sacrifício e um erro em si mesmo), vê passar um cão, bate-lhe, sem que este tenha cometido qualquer erro, entenda-se, sem que este tenha cometido os erros apontados aos cães que, neste caso, é olhar para um sacrifício e lamber a oferta sacrificial.13 É principalmente por este motivo que Janamejaya será impedido de terminar o seu sacrifício de serpentes, permitindo à espécie continuar a existir. Este sacrifício é um espelho do combate central do épico, uma tentativa falhada de extinguir todo o mal do mundo, e de vingar a morte do seu pai, provocada por uma serpente. Trata-se de um anti-sacrifício, sendo a serpente um animal telúrico, ao contrário do grande sacrifício do cavalo, o aśvamedha, um animal celeste.14 Os cães, que simbolizam as classes sociais mais baixas, ao serem utilizados como vítimas de actos de violência injustificada, espelham uma preocupação moral para com a necessidade de legitimar a violência, mas sobretudo, de negar essa mesma violência por todos os meios possíveis.

 

Noutro exemplo, Ekalavya, um niṣāda (sub-casta tribal), procurou Droṇa para que este o treinasse no tiro com o arco. Dada a classe inferior de Ekalavya, Droṇa recusou o pedido. Desta forma, Ekalavya voltou para a floresta, fez uma estátua de barro de Droṇa, e treinou em frente a ela, até se tornar no melhor arqueiro do mundo. Mais tarde, os Pāṇḍavas, legítimos discípulos de Drona, foram caçar com o seu cão, e este, ao afastar-se, encontrou Ekalavya e ladrou-lhe (provavelmente devido à sua cor negra e ao seu aspecto), como resposta aos latidos, Ekalavya disparou sete flechas para dentro da boca do animal, que voltou a ganir para junto dos donos. Os Pāṇḍavas, sem demonstrarem qualquer piedade pelo cão, ficaram, pelo contrário, muito impressionados com a destreza do arqueiro e decidiram procurá-lo. Ao descobrirem Ekalavya souberam que este era discípulo de Drona. Face a isto, Arjuna, aquele que julgava ser o melhor arqueiro do mundo, ficou perturbado pelo facto de Ekalavya ser melhor arqueiro, e questionou Drona sobre o motivo de ter um discípulo melhor que ele. Face a esta questão, Droṇa decidiu-se a tornar Arjuna no melhor dos arqueiros e, na sua companhia, foi ao encontro de Ekalavya, e disse-lhe, que se ele era de facto seu discípulo, então deveria retribuir com algo em troca do ensino que “recebera” (ainda que Drona nunca o tenha ensinado!). Ekalavya aceitou. Assim, Droṇa pediu-lhe que cortasse o polegar (ordem que o épico adjectiva de «terrível»), e ekalavya, cortando o seu próprio polegar, ofereceu-o a Droṇa. A partir de então, sempre que Ekalavya disparava uma flecha, já não era tão rápido como antes, e Arjuna sentiu-se novamente aliviado.15 Este episódio violento, para além de elevar as qualidades deste ser tribal disposto a sacrificar-se, é justificado pelo facto de um niṣāda não poder ambicionar ser arqueiro, acção digna apenas dos kṣatriyas, ou classe guerreira. Assim, Ekalavya traiu a sua natureza ao tornar-se no melhor arqueiro do mundo. Mas também se traiu a si mesmo por ter atacado um cão (metáfora das classes mais baixas, em especial dos niṣādas), que não o havia atacado, cometendo por isto um acto injusto e sendo punido.16 

O épico questiona, preservando simultaneamente, as diferenças de classes, onde as naturezas (ou nascimentos) de cada um, devem ser respeitadas e mantidas. Ekalavya não deixou de ser arqueiro, mas teve de sacrificar algo em troca. Em certa medida, é possível transferir esta mesma ideia de sacrifício e de desrespeito para com a natureza de cada um, ao mito grego das amazonas que, sendo mulheres, não podiam ser arqueiras, a não ser que, simbólicamente, sacrificassem primeiro um dos seios. Ainda que as amazonas se tornem melhores arqueiras após o “sacrifício”, e Ekalavya se torne num pior arqueiro, estamos perante duas descrições que sugerem o perigo de não se respeitar, por um lado a natureza feminina, por outro a classe social. Ambos são símbolos do Caos que tem de ser corrigido ou ordenado. Os cães, ou as classes inferiores, são debatidas no momento em que o próprio deus Dharma, a Lei, encarna como cão, guiando Yudhiṣṭhira até ao céu, obrigando-o a um último teste, onde perante o impedimento feito a Yudhiṣṭhira, acompanhado de um cão, de entrar com ele no céu, Yudhiṣṭhira recusa-se a deixar o mundo, até chegar ao limite, quando que o cão lhe revela ser o seu pai, o deus Dharma, que o pôs, mais uma vez, à prova.17 Por outro lado, é a própria animalidade de Yudhiṣṭhira que é impedida de entrar no céu. Recorde-mo-nos de que também o cão de Ulisses, o único que o reconhece, não o acompanha na sua prova final, morrendo de felicidade,18 o que poderá sugerir a mesma ideia de que algo tem de ficar para trás (i.e., morrer) num momento decisivo.

Também durante a guerra, onde a violência humana é comparada à violência animal, Yudhiṣṭhira refere a tentativa de fazer a paz, da seguinte forma: «uma agitação da cauda, um latido, outro latido como resposta, recuando, mostrando os dentes, e então começa o combate, o mais forte vence e come a carne. Os humanos são exactamente assim.»19 É precisamente esta ideia que o épico faz do inimigo, que tem comportamentos animais e que, por isso, merece o castigo. Quando no final da guerra, Yudhiṣṭhira não aceita o trono por não querer cumprir mais actos violentos, Arjuna chama-o à razão dizendo: «Não vejo nenhum ser que habite no mundo sem violência. Os animais vivem à custa dos outros; o forte come o fraco. O mangusto come o rato, o cão come o gato, ó rei, e os animais selvagens comem o cão. (…) As pessoas honram mais os deuses que são assassinos. Rudra é um assassino, tal como Skanda, Agni, Varuna, Yama. Não vejo ninguém que viva no mundo sem violência.»20 Face a esta realidade, Yudhiṣṭhira aceita o trono, mas decide purificar-se dos seus actos violentos. Estranhamente, tendo em conta o contexto, a cessação da violência revela-se igualmente violenta, quando a purificação do rei passa por cumprir um «sacrifício do cavalo», o aśvamedha, onde Arjuna guia o cavalo durante um ano, combatendo e matando vários opositores, e quando regressa, para além do cavalo, são sacrificados mais trezentos animais. O fumo que sai da gordura queimada do cavalo purifica os Pāṇḍavas. Ainda que o épico teça opiniões que vão contra a violência para com animais, valorizando, após este sacrifício, a caridade e a renúncia como superiores ao sacrifício animal.21 Aqui a violência é legitimada pela tradição védica. No Ṛgveda (1.162.21), o sacerdote, dirigindo-se ao cavalo sacrificial diz: «Na realidade, tu não morres nem és ferido. Mas vais para o mundo dos deuses por caminhos agradáveis de percorrer.»22 e no Manusmṛti (5.39): «O auto-engendrado criou os animais sacrificiais para o sacrifício; o sacrifício gera o bem do Todo; assim, matar num sacrifício não é matar.» Estas justificações para o sacrifício animal, serão as mesmas que utilizará Kṛṣṇa, o deus encarnado no mundo, para convencer Arjuna a combater e a matar os seus familiares em batalha.

A violência como escape não se aplica apenas aos animais, mas também à classes sociais inferiores. No episódio da casa de cera, onde os Kauravas tentaram incinerar os Pāṇḍavas, Yudhiṣṭhira, conhecendo o objectivo dos Kauravas, decidiu que deveriam colocar seis pessoas dentro da casa, para que morressem na vez deles. Assim, Kuntī, a mãe dos cinco Pāṇḍavas, convidou para uma festa uma mulher niṣāda (mais uma vez) e os seus cinco filhos, que se embriagaram e permaneceram na casa. Os próprios Pāṇḍavas pegaram fogo à casa e puseram-se em fuga. Quando a «inocente» mulher niṣāda e os seus cinco filhos foram encontrados carbonizados, todos pensaram tratar-se dos Pāṇḍavas e da sua mãe,23 dando oportunidade aos Pāṇḍavas para cumprirem um primeiro exílio de forma incógnita, disfarçados de sacerdotes-pedintes, e regressando apenas com a esposa comum, Draupadī, que entretanto ganharam. Os niṣādas são aqui substitutos sacrificiais, cujo assassinato é justificado pela sua qualidade sub-humana, mas também pelo seu vício alcoólico.24 Como consequência, a própria Kuntī, morrerá, mais tarde, nas chamas.

 

A mesma Kuntī, será ainda responsável pelo mais notável “erro” do épico. Quando Arjuna, com os seus quatro irmãos, regressou do svayaṃvara, «[casamento por] escolha pessoal [da noiva]», onde ganhou a mão de Draupadī, e disse à sua mãe que havia ganho algo (como se depois de ter estado a pedir esmola), Kuntī, sem ver o que o seu filho havia ganho, disse-lhe que o dividisse com os seus irmãos. Assim, Draupadī acaba por casar com os cinco Pāṇḍavas, o que levará à sua humilhação. O épico procura justificar esta situação caricata com o facto de numa vida anterior Draupadī ter pedido cinco vezes por um marido, e Śiva, nesta vida, lhe ter dado cinco maridos de uma só vez.25

Este casamento de uma mulher com cinco homens será a principal justificação para os maus tratos dos Kauravas, que vêem em Draupadī uma prostituta.26 Mas antes ainda da acção violenta dos Kauravas sobre Draupadī, outro episódio merece destaque. Imediatamente antes da consagração régia de Yudhiṣṭhira, Arjuna, o herói por excelência, e Kṛṣṇa, o deus encarnado, irão pegar fogo à floresta Khāṇḍava, matando todos os animais e homens que estão no seu interior,27 acção justificada com o facto de Agni, o fogo, estar doente devido à continuada ingestão de manteiga, e necessitar de se purificar. O interesse deste massacre está no facto de acontecer imediatamente antes da terrível consagração de Yudhiṣṭhira, justificando, em parte, os actos violentos de decorrerão e que darão à guerra entre Pāṇḍavas e Kauravas, a inevitabilidade.

Yudhiṣṭhira, depois de ser consagrado no rājasūya, ritual sangrento que dá legitimidade total ao rei sobre os seus inimigos derrotados, é convidado para um jogo de dados ritual, que corre terrivelmente mal. Yudhiṣṭhira perde o reino, todos os seus bens, incluindo os seus irmãos e a sua esposa. Como tal, Draupadī, é arrastada pelos Kauravas como escrava, durante a sua periodicidade feminina onde não podia ser vista em público, mas no momento em que os Kauravas tentam despi-la e retirar-lhe o véu, que simboliza a sua condição de esposa, ela é protegida pelo Dharma, ou pela sua legitimidade feminina, que impede maior humilhação,28 acabando por salvar os Pāṇḍavas da escravatura, mas enviando-os para um exílio de doze anos (mais um ano incógnito). Os maus tratos de que Draupadī é vítima após o jogo de dados, são a origem da guerra entre as duas facções, pela obrigação de vingar os maus tratos a uma mulher livre e legitimamente casada.29 A imagem de Draupadī é a representação da fragilidade humana, da esposa humilhada pela própria família, e de facto, o épico nunca permite que nos esqueçamos deste momento, como um fantasma que legitima a morte violenta dos Kauravas. Podemos assim entender que um erro iniciado por Kuntī, acaba por ter consequências desastrosas.

 

Mas os erros começam muito antes. Dhṛtarāṣṭra e Pāṇḍu, o pai dos Kauravas e o pai dos Pāṇḍavas, respectivamente, são reis imperfeitos devido à acção das suas mães durante a concepção. Certa vez, Vyāsa, que tinha um aspecto terrível, uniu-se Ambikā. Mas no momento da concepção esta fechou os olhos, e assim, Dhṛtarāṣṭra nasceu cego. Quando Vyāsa se uniu à sua irmã, Ambālikā, esta ficou pálida, e Pāṇḍu nasceu pálido.30 Pelo facto de estas mulheres não se terem entregado livremente a Vyāsa, mas por terem sido obrigadas a fazê-lo, estes dois soberanos nascem imperfeitos, gerando problemas de governação que acabam por levar ao conflito familiar.31 Dhṛtarāṣṭra, por ser cego, não pode reinar, sendo uma metáfora da incapacidade de tomar acções justas. Pāṇḍu, por sua vez, será impotente (o que está implícito na sua palidez), por ter matado dois animais na floresta, que na realidade eram um casal metamorfoseado sexualmente unido que ele interrompeu. Assim, será amaldiçoado a morrer no momento em que ele mesmo se una sexualmente a uma mulher.32 No entanto, a sua esposa principal, Kuntī, conhecia um hino para invocar os deuses, gerando assim os seus cinco filhos, os Pāṇḍavas, não de Pāṇḍu, mas de diferentes deuses. Kuntī, no entanto, já havia tido um filho fora do casamento, ao ter invocado o deus do sol, Sūrya, levada pela habitual curiosidade feminina, e gerando Karṇa, que foi, à maneira de Moisés, abandonado num rio (de forma a preservar a honra da rapariga) e educado como cocheiro, quando a sua natureza era guerreira. Este unir-se-à aos Kauravas e combaterá contra os seus irmãos, os Pāṇḍavas. Que é consequência, uma vez mais, de um erro feminino. O facto de Karṇa não morrer de acordo com as leis da guerra, e Arjuna cometer uma ilegalidade, é explicada pela ordem social, Karṇa, que é um kṣatriya educado como cocheiro, não pode combater, como tal, quando o seu carro fica preso na lama, e Arjuna o mata num momento onde devia ter parado o combate, não deixa de nos recordar que, efectivamente, Karṇa é um cocheiro, sujeito à sorte do seu carro e não à sorte da guerra. Esta, tal como outras traições ao longo do épico, encontra justificação em acções passadas, geralmente referentes a questões de classes sociais. 

 

As crises do épico estão ainda relacionadas com a poliandria de várias mulheres poderosas, como Satyavatī, que teve dois maridos, Ambikā e Ambālikā, ambas um marido e um parceiro sexual, Kuntī, um marido mais quatro parceiros sexuais (deuses), Mādrī, um marido e dois parceiros sexuais (deuses), e Draupadī, cinco maridos legítimos. O facto de serem as mulheres quem, devido a uma simbólica liberdade sexual, gera, de diferentes formas, os problemas que levarão à guerra, reflecte o medo que os homens teriam da liberdade feminina e das consequências que isso traria à sociedade.34 Assim, o que leva à guerra são actos violentos contra animais, mulheres e sub-castas, mas também os erros que estes podem cometer.

 

Também na guerra, a violência é expressada entre animais, e não entre os heróis. Sendo os heróis caídos e ensanguentados descritos como um campo de flores, que contrasta com os elefantes atormentados pelas flechas, os cavalos esmagados e perfurados pelas presas dos elefantes em fuga, e pela terrível agonia animal durante o combate. Tudo isto como forma de alertar o homem para que não aja como um animal, nem na violência nem no medo e desorientação.35

 

Na realidade, a maior necessidade de justificar a violência vai para a guerra em si mesma, para uma guerra que é civil e da qual não sairão vencedores, pois todos perdem com o conflito. O que nos leva a questionar o motivo da guerra. São, no entanto, inúmeras as justificações para o combate, já que desde muito cedo, os cinco Pāṇḍavas, compreendidos como encarnações de deuses no mundo, começaram a ser invejados e vítimas de actos violentos por parte dos seus primos, os 100 Kauravas, entendidos como encarnações de demónios. Uns e outros não farão mais do que imitar os seus "ascendentes".

 

Existe igualmente uma necessidade de salvar o mundo, motivo pelo qual encarnam os deuses, como Viṣṇu, que na forma de Kṛṣṇa guiará os Pāṇḍavas em batalha, recordando os homens de que eles não são donos do seu destino, mas sim, participantes e vítimas de um plano divino,36 que à maneira da justificação dos Poemas Cíprios para as guerras de Tróia e Tebas, justifica a acção violenta como necessária e garante uma impunidade para os actores da guerra. A própria violência durante a guerra é vista como um acto de sacrifício pessoal, no sentido em que o herói renuncia à sua vida, em nome da vontade divina. O sacrifício justifica a violência na guerra. Zeus provocou as guerras de Tebas e de Tróia, porque a Terra se havia queixado do peso dos homens, pois eram várias as raças que deambulavam pelo mundo (Poemas Cíprios, frag. 1, in GEF) fazendo com que Zeus lançasse, piedosamente, sobre os mortais a guerra de Tebas, e depois a de Tróia, com o mesmo fim, «destes dois eventos surgiu a guerra entre gregos e bárbaros», a fim de destruir os mortais porque estes eram demasiados e faziam muito peso sobre a terra, pelo que Zeus se compadeceu dela. Kṛṣṇa diz que matar o corpo não é o mesmo que matar a alma, assim, tal como o animal num sacrifício, não é realmente matar. A justificação para a destruição dos kṣatriyas é o facto de a terra estar sobrecarregada de homens. É desta forma que a classe guerreira serve de bode expiatório para toda a sociedade. Só para os homens é que a guerra é trágica, mas ela é necessária para os deuses, estando pré-ordenada num processo de destruição e renovação.37 Um dos objectivos da violência durante o combate, cujo detalhe esmaga o leitor, é a desconstrução da capacidade de se separar o que é justo daquilo que é injusto, do livre arbítrio do destino, e do mundo dos deuses do mundo dos homens, obrigando, por fim, a uma reinterpretação do que é a moral.

Na Bhagavadgītā, concretamente, a violência bélica é justificada pelo facto de ser «sacrificial» e preservadora da ordem cósmica, sendo o seu resultado positivo: aqueles que vencem recebem a felicidade no mundo, e aqueles que morrem recebem-na no céu (BhG 2.37). A crise no Mahābhārata está, por isto, demarcada por dois grandes rituais sacrificiais: o rājasūya e o aśvamedha. A compreensão da violência enquanto moral é, sem dúvida, um dos pontos essenciais do Mahābhārata, um conjunto de complexas questões éticas (ou «caminho do dharma», dharmasya gatiḥ). De acordo com Emily Hudson, a ética no Mahābhārata é definida num processo de compreender, reconhecer e ultrapassar o sofrimento. Existem quatro papéis para as personagens do Mahābhārata: a vítima (a que sofre); o agente (o que age violentamente); a testemunha passiva (aqueles que não agem, por medo ou por dever moral); e o conselheiro (aquele que elimina o sofrimento quanto à violência, justificando-a).38 É obrigação do rei livrar a terra do seu peso e protegê-la, através de sacrifícios, da mesma forma, depende dos Pāṇḍavas a salvação do mundo, mas também do dharma, a ordem social e cósmica, que está em risco. Em todo o caso, antes da guerra estabelecem-se as regras para o combate MBh 6.1.26-33. No Agni Purana (19-20) lemos que o Adharma (injustiça) é o marido da Hiṃsā (violência), estes tiveram dois filhos, Anṛta (falsidade) e Nikta (fraude), e deles surgiram Bhaya (medo), Naraka (inferno), Māyā (Ilusão) e Vedanā (sofrimento). Maya gerou Mrtyu (morte). 

O Mahābhārata diz-nos que a narrativa é sobre o dharma (1.1.14)39 «O eterno dever do guerreiro é sofrer uma morte violenta em combate», o que demonstra a preocupação do autor para com a justificação da morte. O Mahābhārata procura por todos os meios evitar a guerra, apresentando variadas vezes a tragédia que ela representa, ainda que justifique a utilização da violência, como necessária. Assim, a Gītā é usada para justificar a guerra. Arjuna, confrontado com duas vias, o seu próprio dharma (matar o inimigo) e mokṣa (a renúncia, que ele como guerreiro não pode aceitar), é-lhe oferecida por Kṛṣṇa uma terceira via, bhakti, devoção. A devoção permite-lhe compreender, à maneira upaniṣádica, que ele é Brahman, é o Todo, e agindo com devoção para com Kṛṣṇa, ele é libertado das consequências das suas acções. Arjuna é aconselhado a viver com as acções livres de desejo, ou livres dos frutos dessa mesma acção, mantendo um estado de renúncia mental, mas movendo-se no mundo material de acordo com a lei. Kṛṣṇa explica que a alma nunca deixa de existir, como tal, o sábio não lamenta nem os mortos nem os vivos, porque «a não-existência não pode chegar a existir, e a existência não pode deixar de existir». (MBh 6.26.17) O sábio deve agir como o ignorante que está preso às acções, mas liberto da acção, de forma a proteger o mundo (MBh 6.27.25). O próprio Kṛṣṇa apresenta-se como aquele que ciclicamente desce ao mundo para proteger os virtuosos, destruir os fracos e reestabelecer a lei. Assim, à maneira de Kant, o homem que age, deve agir por mandato divino, e não por apetite, acção pela acção e livre dos frutos dessa mesma acção. Arjuna é apenas o instrumento da violência, pois Kṛṣṇa já havia decidido que os Kauravas haviam de morrer (justificação da acção violenta de Arjuna). Por outro lado, sendo o sofrimento devido ao desejo e apego pela juventude, beleza, riqueza e àqueles que se ama, faz sentido que sejam destruídos, já que eles não são eternos. Por exemplo, Kṛṣṇa convence Yudhiṣṭira a mentir a Droṇa de forma a causar a sua morte, convence Arjuna a matar Karṇa enquanto a roda do seu carro está presa, violando as leis da batalha. O facto de o épico fazer pausas descritivas, prolongando o tempo, principalmente na narrativa de massacres, força o leitor a tornar-se íntimo com a morte e a violência, com o motivo de o fazer aceitar a vulnerabilidade da condição humana para com o tempo, a aceitar a destruição como algo natural, permitindo o heroísmo e a compreensão, combatendo o desespero daqueles que assistem, por meio de justificações morais.  A repetição dos tópicos da morte, violência e da crueldade é feita ad nauseam até serem reduzidos à banalidade, tornam-se num facto mundano e deixam de chocar o ouvinte, neste caso o guerreiro. Ainda que o épico defenda a não-violência, existem momentos onde essa violência tem de ser cometida em nome de um bem superior, tal como defender o mundo e defender o próprio dharma, tal como Arjuna na Gītā. A guerra é entendida como um sacrifício humano, seguindo a ideia dos Brāhmaṇas onde o primeiro e o melhor animal para ser sacrificado é o homem, que pode ser substituído por animais. A necessidade de justificar a violência, mostra-nos que essa violência é justa,40 e o facto dos kṣatriyas estarem autorizados a fazer uso dessa violência contra o mal e a injustiça do mundo, dá-lhes toda a legitimidade necessária.

 

O Manusmṛti justifica da seguinte forma a violência: «Se o rei não infligir, incansavelmente, o castigo sobre aqueles merecedores de castigo, o forte irá cozinhar o fraco, como o peixe num espeto; o corvo comerá o bolo sacrificial, o cão lamberá a comida do sacrifício, e a propriedade não será de ninguém, os inferiores usurparão o lugar dos superiores. O mundo é mantido em ordem através do castigo, porque são raros os inocentes; através do medo do castigo todos usufruem da felicidade.»41 Desta forma, e para que sejam legitimamente castigados os infractores, são debatidos até à exaustão os parâmetros da guerra justa, que é movida pela restauração da ordem cósmica, busca da paz, punição dos injustos, e protecção daqueles que são injustamente atacados. Esta acção violenta justa, está relacionada com o sentido de responsabilidade dos guerreiros responderem à sua própria natureza, sem esse sentido de responsabilidade o mundo mergulha no caos. Por outro lado, a narrativa desenha-se em torno de dilemas sem solução,42 actos ilegítimos de ambas as partes, incluindo dos deuses, onde esta «poética do dilema» responde à violência ilegítima dos Kauravas com uma reacção igualmente ilegítima (mas gradualmente legitimada) por parte dos Pāṇḍavas.43 Na realidade, «a guerra é a mãe de todas as coisas» e o dharma é «súbtil». A lei (dharma), o tempo (kāla), o destino (daiva) e a acção prévia (karma), justificam a violência.44 É desta forma que as várias acções violentas, harmonizadas e justificadas com mais violência, geram a guerra, a única capaz de anular toda a violência e toda a divisão entre facções, classes e seres.

 

1 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 252.

2 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, pp. 253-258, 260-261; Romila Thapar, Ashoka and the Decline of the Mauryas, Oxford, Oxford University Press, 1961, 255-256; 262; John Keay, India, a History, New York, Grove Press, 2000, p. 108; Gavin Flood, An Introduction to Hinduism, Cambridge, Cambridge University Press, p. 119.

3 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, pp. 261-262; Wendy Doniger, Tales of Sex and Violence: Folklore, Sacrifice, and Danger in the Jaiminiya Brahmana, Chicago, Chicago University Press, 1985; Hermann Kulke, Dietmar Rothermund, A History of India, London, Routledge, p. 45; Luis Gonzalez-Riemann, The Mahabharata and the Yugas, New York, Peter Lang, 2002.

4 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 263.

5 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 262.

6 Nick Allen, “Just War in the Mahabharata”, in: Richard Sorabji, David Rodin, The Ethics of War: Shared Problems in Different Traditions, Aldershot, Ashgate, 2006, p. 141.

7 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 253.

8 James Fitzgerald, The Mahabharata, v. 7, The Book of Women and The Peace, 1, Chicago, University of Chicago Press, 2004, p. 123.

9 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 265.

10 AS 1.13; Cf. MBh 12.67.17.

11 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 265.

12 Alf Hiltebeitel, The cult of Draupadī, vol 1: Mythologies from Gingee to Kurukṣetra, Delhi, Motilal Banarsidass, 1991, p. 203.

13 MBh 1.3.1-18.

14 MBh 1.52-58; Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 266.

15 MBh 1.123.10-39.

16 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 289.

17 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 268.

18 Od. 17.291-327.

19 MBh 5.70.70-72; compare-se com Il. 22.262-266.

20 MBh 12.15.

21 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 272; Robert Bellah, Religion in Human Evolution: From the Paleolithic to the Axial Age, Cambridge, Belknap Press of Harvard University Press, 2011, pp. 562-563.

22 Trad. Henk Bodewitz, "Hindu ahimsa and its roots", in Violence Denied. Violence, Non-Violence and the Rationalization of Violence in South Asian Cultural History, Ed. Jan E.M Houben and Karel R. van Kooij. Leiden: Brill, 1999c.:24). Para a questão do sacrifício veja-se: Houben (1999).

23 MBh 1.134.37.

24 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 288.

25 MBh 1.171.10-11 e ss.

26 MBh 2.61.34-36.

27 MBh 1.217.

28 MBh 2.61.40-45; Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 298.

29 MBh 2.46.1-3.

30 MBh 1.99-100.

31 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 294.

32 MBh 1.90.64; 1.109.5-30

34 Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, pp. 301-302.

35 Cf. Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 265.

36 W. J. Johnson, “Introduction”, in The Sauptikaparvan of the Mahabharata: The Massacre at Night, Oxford, Oxford University Press, 1998, p. 37; Madeleine Biardeau, Études de mythologie hindue, vol. 4, Paris : Ecole française d'Extrême Orient p. 217.

37 BhG 18.65-6; W. J. Johnson, “Introduction”, in The Sauptikaparvan of the Mahabharata: The Massacre at Night, Oxford, Oxford University Press, 1998, p. 38; Jacques Scheuer, Śiva dans le Mahābhārata, Paris, Presses Universitaires de France, 1982, p. 349; Cf. Poemas Ciprios, Arg. 1 e Frag. 1, in GEF; Danielle Feller, The Sanskrit Epics' Representation of Vedic Myths, Delhi, Motilal Banarsidass, 2004, p. 283;  James W. Laine, Visions of God. Narratives of Theophany in the Mahabharata, Vienna, Gerold, 1989, p. 162, n3.

38 Emily Hudson, Disorienting Dharma: Ethics and the Poetics of Suffering in the Mahābhārata, Atlanta, Emory University, 2006, pp. 3-5, 10-13. E. Washburn Hopkins, The Great Epic of India, Calcutta: Punthi Pustak, 1969, 363; para a problematização da “ética” na literatura épica indiana, veja-se: B.K. Matilal, Ethics and Epics: The Collected Essays of Bimal Krishna Matilal, ed. Jonardon Ganeri, New Delhi,  Oxford University Press, 2002.

39 Biardeau, Études de mythologie hindue, vol. 4, p. 214 e ss. Nick Allen, “Just War in the Mahabharata”, in: Richard Sorabji, David Rodin, The Ethics of War: Shared Problems in Different Traditions, Aldershot, Ashgate, 2006, p. 138.

40 MBh 6.17.11; Wendy Doniger, The Hindus: an alternative history, Oxford, Oxford University Press, 2010, pp. 282-283) Emily Hudson, Disorienting Dharma: Ethics and the Poetics of Suffering in the Mahābhārata, Atlanta, Emory University, 2006, pp. 21, 207-209, 269.; Arthur B. Keith, The Religion and Philosophy of the Veda and Upanishads, 2 vols. Harvard Oriental Series 31-32. Cambridge, Harvard University Press, 1925, p. 273-4. Danielle Feller, The Sanskrit Epics' Representation of Vedic Myths, Delhi, Motilal Banarsidass, 2004, p. 262; Raj Balkaram, Walter Dorn, “Violence in the Valmiki Ramayana: Just War Criteria in an Ancient Indian Epic”, Journal of the American Academy of Religion, 2012.

41 ManuS 7.20.22.

42 Como apelidou David Shulman, de «poética do dilema» David Shulman, The Wisdom of the Poets: Studies in Tamil, Telugu and Sanskrit, Delhi, Oxford University Press, 2001, p. 24.

43 Emily Hudson, Disorienting Dharma: Ethics and the Poetics of Suffering in the Mahābhārata, Atlanta, Emory University, 2006, p. 6

44 Sūkṣmā Cf. A.K. Ramanujan, "Where Mirrors are Windows: Towards an Anthology of Reflections," History of Religions, 28/3, p. 200.

bottom of page