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O Mahabharat

de B.R. Chopra

Ricardo Louro Martins
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O Mahabharat, a «grande [história dos] Bharatas», é uma popular série televisiva baseada no épico Mahabharata, que consiste em 94 (depois ampliados a 108, um número sagrado) episódios em hindi, que foram passados pela primeira vez entre 2 de Outubro de 1988 e 24 de Junho de 1990, no DD National. A série foi produzida por B.R. Chopra (1914-2008) e dirigido pelo seu filho R. Chopra. A música, de grande qualidade, foi composta por Rajkamal. Depois da série Ramayan (1987-88), que incendiou o nacionalismo hindu levando mesmo à destruição de mesquitas, esta foi a segunda a levar à televisão e ao público geral um épico indiano. A série foi dobrada em várias línguas e passou em vários canais internacionais como a BBC. Os episódios da série original, com cerca 45 minutos, passavam aos domingos de manhã entre as 9h e as 10h, durante os quais os lugares públicos indianos ficavam praticamente desertos, e as pessoas reuniam-se em qualquer casa que tivesse televisão para ver a série e, inclusivamente, prestar culto per TV aos seus heróis e deuses, o que demonstra a extraordinária capacidade dos hindus se adaptarem aos novos tempos. A assistência era tão fiel, que durante as eleições num Domingo de manhã, a série teve de ser adiada para a parte da tarde, para evitar uma abstenção massiva. Nitish Bharadwaj (que representou Krishna) tornou-se tão popular que se tornou membro do Parlamento Indiano. Por toda a Índia, cerca de 200 milhões de telespectadores assistiram a cada um dos episódios, durante dois anos. Podemos dizer, com toda a certeza, que esta série foi um fenómeno histórico que alterou (em certos casos incendiou) o imaginário indiano, onde poucos conheciam integralmente o épico.

A série aborda todos os episódios do épico, valorizando uns sobre outros (relatando em voz-off, através do «Tempo», os episódios menos importantes) e centrando-se obviamente nos conflitos internos da família dos Kurus, entre Pandavas e Kauravas. Os principais tópicos são: o nascimento e crescimento de Bhisma; a maldição de Pandu; o nascimento dos Pandavas e dos Kauravas; a infância de Krishna; o casamento dos Pandavas; os Pandavas abandonam Hastinapura e fundam Indraprastha; o jogo de dados; o exílio e disfarce dos Pandavas; os 18 dias de batalha em Kurukshetra, com grande destaque para a Bhagavadgita; Yudhishthira recupera o trono; a morte gradual das personagens.

Ainda que o Mahabharat tenha sido baseado no inofensivo livro infantil Amar Chitra Katha, o facto de o guionista ser um Muçulmano de esquerda, Rahi Masuma Raza, não pode ser ignorado. Por este motivo os créditos iniciais da série foram feitos em Inglês, Hindu e Urdu (para a audiência muçulmana), aproveitando o facto de o Mahabharata ser muito diverso (mais do que o Ramayana) e poder por isto ser oferecido a diferentes públicos (numa lógica semelhante àquela utilizada no Mahabharata de Peter Brook). Para entendermos o impacto da série, bem como as respostas e questões que lançou sobre a população, é igualmente importante referir o facto de Shashi Tharur ter recontado de forma satírica a história do Mahabharata, intitulada O Grande Romance Indiano (1989) enquanto decorria a série, no qual o santificado Bhishma, filho da deusa Ganga (o rio Ganges) se torna no Ganga-ji, estranhamente semelhante ao Gandhi-ji. Ao mesmo tempo Dhritarashtra representa Nehru, com especial enfoque na sua filha Duryodhani (Indira Gandhi). Karna (o abandonado irmão dos Pandavas) passa-se para o lado dos Kauravas (os Muçulmanos) e torna-se Jinna, e quando na história original Karna arranca a armadura do seu corpo, aqui ele agarra numa faca e circuncisa-se a si mesmo, mantendo o papel original de «mero cocheiro» e passando a representar a origem dos seus modernos sucessores, os chauffeurs. Esta valorização literária e televisiva de heróis «enfraquecidos» entre as castas mais baixas, como justificação para as profissões «menos nobres» é igualmente comum ao longo da série. Tharur quis valorizar o verdadeiro significado do itihasa (história épica), que têm a significação de «aquilo que [as pessoas] dizem ter acontecido.» Esta interpretação de Tharur, que caminhou pari passu com o êxito da série televisiva, deu ao imaginário indiano uma visão renovada do épico e uma reflexão sobre a importância actual da série.

Estas interpretações televisivas, demarcaram definitivamente uma linha entre as heroínas épicas e as suas interpretações televisivas, tornando-as cada vez mais controversas e frágeis, ao mesmo tempo que moldam os dogmas da castidade feminina contemporânea. Tal como em vários manuscritos do épico posteriores ao séc. X, também a série ignora o facto de Draupadi estar protegida pela seu próprio dharma, e quando Duhshasana tenta despir Draupadi, esta perde poder e é representada com um sari tornado infinito, não por ela, mas por Krishna. Em resposta ao impacto visual desta cena, em que a mulher não se pode proteger a si mesma, foi criada uma colecção de saris com o nome «Draupadi», que procurou uma revalorização da inabalável fidelidade feminina. O pensamento contemporâneo hindu que valoriza as virtudes patriarcais está bem presente na série, na qual a mulher é considerada inferior e residente numa frágil esfera emotiva. E ainda que as personagens femininas do Mahabharata sejam extremamente poderosas, sábias e exemplares, tornaram-se na série meramente «veneráveis». Apenas Draupadi manteve um carácter «guerreiro», renovando, aqui e ali, uma esperança anti-opressiva.

No entanto, ainda que a frágil situação feminina se mantenha, as rígidas fronteiras entre castas da Índia épica não se mantiveram estáveis após a independência, perdendo importância por toda a Índia. Assim, quando no Mahabharata os Pandavas e a sua mãe, Kunti, escapam do incêndio no episódio da «Casa de Cera», sendo substituídos por uma mulher nishada (casta de pescadores) e pelos seus cinco filhos (que embriagados morrem no seu lugar, não deixando suspeitas sobre a sobrevivência dos Pandavas), sem que Vyasa nos ofereça uma ideia de arrependimento, a série, pelo contrário, exibe um fortíssimo sentimento de culpa e uma grande necessidade de justificar o porquê de matar pessoas inocentes. Ao mesmo tempo, esta Índia do séc. XX assistiu a movimentos feministas e contra a diferenciação de castas que utilizaram muitas vezes este passo do Mahabharata para justificar o castigo que receberão os Pandavas (os nobres), em especial Kunti, que morrerá igualmente nas chamas. Ekalavya, o nishada que corta o seu polegar a pedido de Drona, para que Arjuna pudesse ser o melhor arqueiro do mundo (pois ele é que era o kshatriya), torna-se na série num herói e recebe um destaque muito maior do que aquele que recebe no épico. Sabemos que Ekalavya foi desde cedo assumido como um herói dos nishadas e outras tribos, mas foi também, durante o séc. XX, usado como metáfora para a «revolta» e para vários movimentos de «libertação» entre os membros das castas inferiores, mas terá sido a série a dar o maior impulso a Ekalavya, que se tornou num nome apropriado para todo o tipo de organizações culturais da Índia que se dedicaram a prestar cuidados aos menos favorecidos.

Ao contrário do épico, a série utiliza prolongadamente a narrativa do Harivamsha sobre a infância de Krishna, com carácter totalmente devocional, retratando-o continuamente como trickster divino, um Hermes-Dioniso que leva os devotos a um sorriso apaixonado, não prestando atenção às metamorfoses originais do deus-herói. A série tornou-se no terreno não-dualista onde a illusio ex machina é sobrevalorizada: não há conflito, não há inimigos, isto é um teste! Não nos podemos esquecer que poucas décadas haviam passado desde a libertação da Índia, e como tal, a série serviu para apaziguar e «justificar» o passado, onde a violência e a não-violência se articulam milagrosamente em nome de uma «vontade divina». A série conta ainda com uma especial adição: para além de no início de cada episódio o «Tempo» narrar os principais eventos a reter dos episódios passados, também no final de cada episódio são cantados versos sucintos e explicativos, na maior parte dos casos com um forte carácter filosófico, o que ajuda o telespectador a identificar-se com as grandes questões morais do épico, em especial com os estados emotivos das personagens, ao ponto de ser possível elaborar um simplificado tratado filosófico com estas máximas. Assim termina o primeiro episódio da série: «uma promessa irreflectida / só pode trazer dor / então pensa antes de agir.» Tal como nenhuma história pode ser com justiça comparada ao Mahabharata, também nenhuma série lhe poderá ser semelhante, sendo uma obra prima da produção televisiva, com um sentimento filosófico que está muito além daquele que esperamos ver num filme ou série ocidentais. Para os ocidentais, ainda que a série não conte com os melhores efeitos visuais, pode demarcar-se como uma completa introdução à cultura e sociedade hindus, agraciada pelo facto de se encontrar legendada e disponível online. Quisemos destacar esta série, não por ser mais fácil de digerir do que o monumental épico (oito vezes o tamanho da Ilíada e Odisseia juntas), mas essencialmente porque oferece uma reflexão contemporânea sobre o épico, que reclama a congregação, a devoção e a acção de toda a comunidade.

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Mahabharat - Episódio 1 (legendas em inglês)

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